terça-feira, dezembro 05, 2006

Uma breve História do Caos: Prólogo

Um leitor atento poderia observar que um bom caos não tem história, isto é, não tem começo, fim ou desenvolvimento que possa ser traduzido em palavras. Nosso objetivo, portanto, nesse prólogo a esta Estética do Caos, não é contar de fato a história do próprio caos, mas apenas uma breve história de um longo percurso dos discursos filosóficos sobre o caos. Se nele incluímos também alguns poetas (e com isso não nos referimos apenas a Hesíodo, mas também a Aristófanes e a Joyce), foi por total incapacidade de pensar o caos sem um mínimo de poesia. Foi inspirado por essa poesia que pensamos uma fusão entre Cisão e União, ou seja, entre os deuses Caos e Eros da mitologia grega. Mas também sua posterior separação, que os isolou ao longo dos séculos. Do mesmo modo, para reuni-los novamente seria necessária a força da poesia, ou dito de maneira mais precisa, seria necessário que a filosofia refletisse sobre a natureza da arte, tal como fizeram Schelling, Schopenhauer e Nietzsche. Assim, Cisão e União, transmutados em desordem e ordenação, reataram seu diálogo, não mais como conceitos distintos, mas como uma unidade tensa e conflituosa, tal como o caosmos da escrita de James Joyce. Essa não é, portanto, uma história de historiadores, mas em vez disso uma história que precisou se adaptar à “história” dos poetas, a começar pela de Hesíodo.

domingo, novembro 19, 2006

Uma Breve História do Caos: entre Teogonia e Teodicéia.

“Sim, bem primeiro nasceu o Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresistível sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais”. Hesíodo. Teogonia.

O mais antigo, o primeiro deus da mitologia grega, segundo Hesíodo (VIII-VII a.C.), anterior tanto à Terra, quanto a Tártaro e a Eros, parece não ter qualquer preeminência diante das demais divindades. Ao contrário, em vários momentos do pensamento ocidental, o mais primitivo dos deuses acaba por ser de diversas formas desprivilegiado, o que de certo modo parece ocorrer mesmo nos versos de Hesíodo, onde esse deus assemelha-se a um abismo primordial, a partir do qual surgem divindades obscuras: Érebos (a antecâmara do inferno) e Noite. No poema grego, dessa última deusa nascem ainda “as forças da debilitação, da penúria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do tormento, do engano, da desaparição e da morte — em suma, tudo o que tem a marca do não-ser.”[1] Todas essas divindades (descendentes de Caos) vêm ao mundo não pela união amorosa, mas pela força de uma cissura, numa espécie de esquizogênese: marca inegável de seu antecessor primordial. Os únicos deuses da linhagem de Caos que nascem pela união (em vez da cissura) são Éter e Dia, também os únicos descendentes luminosos e positivos daquele primeiro deus. Eles vêm ao mundo pela força do amor, ou seja, de Eros, a força oposta à cissura de Caos — o deus da unidade amorosa. Talvez por isso, ele seja cantado por Hesíodo como “o mais belo entre os Deuses imortais” (kállistos).

Eros e Caos reaparecem também em um outro mito, na verdade anterior a Hesíodo, comumente atribuído aos cultos órficos, mas que encontra uma bela adaptação nos versos de Aristófanes (450 a.C.-388 a.C):

“No princípio só havia o Caos, a Noite, o obscuro Érebo, e o profundo Tártaro. A terra, o ar e o céu não existiam ainda. [695] Primeiramente, a Noite de negras asas botou um ovo sem germe no seio das profundezas infinitas de Érebo, e a partir daí, depois da revolução de longas eras, o gracioso Eros saltou brilhante com suas asas douradas, rápidas como os vendavais da tempestade. Ele uniu-se ao obscuro e alado Caos no profundo Tártaro e assim, depois disso, chocou nossa raça, a qual foi a primeira a ver a luz. [700] A [raça] dos imortais não existiu até que Eros tivesse reunido todos os ingredientes do mundo e, a partir desse matrimônio, o Céu, o Oceano, a Terra e a raça imperecível dos divinos deuses saltou para a existência. Assim nossa origem é muito mais velha do que a dos moradores do Olimpo. Nós somos a descendência de Eros; há mil provas para demonstrar isso. Nós temos asas e nós oferecemos ajuda aos amantes. [705] Quantos belos jovens, que haviam jurado permanecer insensíveis, abriram suas coxas por causa de nosso poder e se renderam a amantes [mais velhos] quase ao término de sua mocidade, sendo conduzidos [ao amor] por presentes como uma codorniz, um flamingo, um ganso, ou um galo.”[2]

As palavras do corifeu de As Aves mostram como o Caos, mais uma vez, está ligado às forças do não-ser (Noite, Érebus e Tártaro) e mostram também como somente através da intervenção de Eros surge a vida, sob a forma da primeira raça “a ver a luz”. Em seu ato de criação, foi preciso que Eros reunisse todos os ingredientes necessários para que finalmente surgisse a vida. Foi preciso que a unidade de Eros dominasse a cissura de Caos e assim pudessem surgir os deuses imortais. Todavia, é inegável o casamento entre esses dois princípios opostos: a criação não é um atributo apenas de Eros ou Caos, mas surge do encontro de ambos os deuses.

Apesar desse casamento descrito pelo célebre comediógrafo de Atenas, o privilégio de Eros, o mais belo dos deuses, em relação ao Caos e às outras divindades reaparece em vários momentos do pensamento ocidental, onde a unidade que é representada pelo amor é tomada como o princípio fundador de todas as coisas. Por exemplo, em Parmênides (515-445 a.C.): “Como primeiro concebeu [daimon], antes de todos os deuses, Eros”.[3]

Também em Platão (427-348 a.C.), num diálogo onde o próprio Hesíodo aparece como referência, afirma Fedro: “Assim, achamos que a antiguidade de Eros é universalmente admitida, e verdadeiramente ele é a antiga fonte de todos os nossos mais elevados deuses.”[4] Essa frase do Banquete, em especial, soa de forma estranha justamente ao lado do verso de Hesíodo. Afinal, como Eros poderia ser anterior ao próprio Caos na Teogonia? Isto se dá apenas porque Caos não aparece exatamente como um deus, diria Aristóteles, mas como um princípio, uma arxé ; todavia, uma arxé negativa, totalmente oposta à unidade de Eros. Aristóteles admite que tanto Caos quanto Oceano são tomados como princípio (arxé) para alguns poetas, mas ele defende a unidade como princípio, em lugar da dualidade ou da pluralidade.[5]

Muito embora não encontremos uma clara negatividade ontológica de Caos na antiguidade clássica, do ponto de vista estético e moral ela é inegável. Pois esse deus primitivo sempre aparece associado a males, enquanto a ordem é referida à beleza[6]. É considerado não apenas como algo anterior a uma ordenação, mas por isso mesmo algo destituído de toda beleza.[7] Seguindo essa mesma linha, Aristóteles (384-322 a.C.), por exemplo, associa a ordem ao belo e ao bem, e o caos ao feio e ao mal. Depois de citar a célebre passagem da Teogonia sobre o surgimento de Caos, Gaia e Eros, Aristóteles afirma o seguinte:

“Assim insinuando [Hesíodo] que deve haver no mundo alguma causa a qual mova as coisas e as combine. (...) Agora desde que ficou aparente que a natureza também contém o oposto do que é bom, i.e. não só ordem e beleza, mas desordem e feiúra; e que há mais coisas piores e comuns do que há boas e belas: devido a isto outro pensador introduziu o Amor e o Ódio como as causas respectivas destas coisas”. [8]

Séculos mais tarde, a negatividade do deus Caos ganha vida sob a forma do conceito de desordem. No período da escolástica, por exemplo, Nicolau de Cusa (1401-1464) descreve o “tenebroso caos” como sendo a massa disforme, matéria a partir da qual o entendimento e a razão formam, finalmente, a realidade.[9] Desse modo, embora seja dotado de uma massa ou matéria, lhe faltaria o estatuto de realidade. Essa mesma ausência de realidade, encontramos ainda no renascimento. Com Agrippa (1486-1535), o caos é visto como “o que nunca é e nem vem a ser, aquilo que torna os sentidos completamente errados.”[10] Portanto, a negatividade ontológica do caos passa a ser cada vez mais certa. Caos e não-ser identificam-se completamente.

Um século depois, Descartes (1596-1650), em seu Discurso do Método, alude à possibilidade de que o Deus cristão pudesse ter criado um mundo caótico “tão tumultuado quanto os poetas possam nos fazer acreditar”,[11] mas que, em seguida, não fizesse outra coisa senão deixar a natureza agir “conforme as leis estabelecidas por Ele.” Alicerçando seus argumentos a partir do princípio da perfeição divina, Descartes demonstra como ao menos “parte da matéria desse caos”, sendo submetida às leis da natureza, deve “dispor-se e arranjar-se de uma certa maneira que a torne semelhante” a nosso Universo. Mas afirma também ser “muito mais provável que, desde o início, Deus o tenha tomado tal como devia ser.” Assim, de modo análogo ao que utilizou para expurgar o Deus enganador em suas Meditações, Descartes expurga também o caos do Universo.

Algumas décadas depois, num contra-movimento, Pascal (1623-1662) encontra o caos na própria natureza humana, dando largos passos em direção ao romantismo e ao pessimismo do século XIX. Neste sentido, ele afirma:

“Que quimera é então o ser humano! Que estranha aparência! Que caos, que objeto de contradições! Juiz de todas as coisas, débil verme da terra, dono da verdade, cheio de incertezas, prêmio e excremento do Universo! (...) um monstro incompreensível.”[12]

Para ele, o caos não é nem um vazio, nem uma ilusão. Em vez disso, é a própria realidade viva e incompreensível no interior dos homens.

Mais de 20 séculos depois de Hesíodo, Leibniz (1646-1716) escreve sua própria história divina, não sob a forma de uma Teogonia politeísta (como a do poeta grego); mas em uma Teodicéia cristã. Nessa obra de 1710, descrevendo o processo de formação dos corpos dos animais, aliás no mesmo tom de Descartes, ele afirma o seguinte:

“Isso pode vir apenas do infinitamente poderoso e infinitamente sábio autor (Urheber) de todas as coisas, o qual criou tudo na ordem e antecipadamente forneceu lá desde o início cada ordenação e arte. Não há caos no interior das coisas nem no organismo em todas as partes da matéria, cuja ordenação se origina de Deus”.[13]

Quatro anos mais tarde, o autor da Monadologia confirma essa tese em sua célebre obra: “Assim, não há nada baldio, nada de estéril, nada de morto no universo, nenhum caos, nenhuma confusão salvo em aparência”.[14]

Vemos, portanto, como, da antiguidade a Leibniz e sob formas diferentes, houve uma hegemonia da ordem nos diversos discursos filosóficos sobre o caos. Assim, ele foi visto predominantemente[15] de maneira negativa: ou do ponto de vista ontológico, ou estético, ou ainda (na maioria das vezes) moral. Todavia, a história do caos não finda no século XVIII. Ao contrário, ela está apenas iniciando seus primeiros passos. A partir daí o caos passará verdadeiramente a ser pensado; estando presente agora não apenas na filosofia, mas também nas ciências. Em vez de ser visto como um impeditivo para o conhecimento humano, ele começa a se transformar num elemento fundamental para a compreensão dos vários fenômenos que cercam a vida humana: das artes à biologia, da física às ciências sociais.

Notas:

[1] TORRANO, Jaa. A quádrupla origem da totalidade, p. 44.
[2] ARISTÓFANES, As Aves. Versos 605-706. Comparar com a tradução brasileira de Mário da Gama Kury (ARISTÓFANES, As Aves, p. 139).
[3] PARMÊNIDES, Fr. 13. In: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores Originários, p.53.
[4] PLATÃO. Banquete [178c]. In: ______. Collected Dialogues. p. 533.
[5] A explicação encontra-se em ARISTÓTELES. Metaphysics [1091b5-6]. In: ______. The complete works of Aristotle. p. 1724. Comparado com texto bilíngüe Aristotle's Metaphysics, ed. W.D. Ross.
[6] Cf. PLATÃO. Político [273b-c], op. cit. p. 1038.
[7] Cf. PLATÃO. Timeu [53], op. cit. p. 1179-8.
[8] ARISTÓTELES. Metafísica I [985a1-10].
[9] NICOLAU DE CUSA. Da Douta Ignorância. In: ______. Wichtigste Schriften, p. 52, 98.
[10] AGRIPPA. O Discurso contra a Incerteza e Vaidade das Ciências e das Artes. In: ­­­­­______. Die Eitelkeit und Unsicherheit der Wissenschaften und die Verteidigungsschrift, p. 7.
[11] DESCARTES. Discurso do Método, p. 52.
[12] PASCAL. Pensamentos sobre a Religião, p. 234.
[13] LEIBNIZ, G. W. A Teodicéia, p. 21.
[14] LEIBNIZ, G. W. A Monadologia § 69. In: ______. Selections, p. 547. Ver também p. 548.
[15] Afirmamos “predominantemente” apenas porque, vez por outra, é possível encontrar exceções à regra, isto é, pensadores que de algum modo, ainda que indiretate e sem se referir especificamente aos termos “caos”, “desordem” etc. foram capazes de oferecer alguma contribuição significativa para o pensamento do caos (em vez de nadificá-lo, como os demais). Por exemplo: Giambattista Vico, cf. DUKE, Marshall. Chaos Theory and Psychology: Seven Propositions, p. 282: “É intrigante notar que o mesmo conceito de ‘vidas dentro de vidas’ em todas as áreas da função natural e humana também foi proposto há uns trezentos anos nos escritos de Giambattista Vico. As idéias de Vico, tal como as dos mais recentes teóricos do caos, também começaram a se infiltrar na psicologia moderna”. Além de Vico, talvez Lucrécio e muito provavelmente Paracelso também se insurgiram contra a tendência que foi predominante da antiguidade a Leibniz. Já os pré-socráticos serão discutidos mais adiante.

Uma Breve História do Caos: o fim do século XVIII.

Em oposição a seus antecessores, David Hume (1711-1776) parece inaugurar um novo pensamento sobre o caos. A partir do filósofo escocês, a muralha que supostamente dividia a fronteira entre o mundo da ordem e o da desordem começa a dar sinais de desmoronamento. Embora apareça de forma sutil, o grande marco dessa união humeana entre caos e ordem é um texto publicado postumamente em 1779. Trata-se de um diálogo onde Philo (um dos personagens) afirma o seguinte:

“Em todo caso, embora revoluções inumeráveis produzam afinal algumas formas, um caos, cujas partes e órgãos se ajustam de algum modo, é garantido no fim; pois elas ganham forma sob constante mudança da matéria.”[1]

Vemos aqui um privilégio da transformação, a partir da qual surgem novas formas. Todavia, essas formas não paralisam as “revoluções inumeráveis” e a “constante mudança da matéria”. Muito embora Philo não seja o “herói” de Hume, o narrador do diálogo dá razão a ele afirmando que Philo “sugere uma hipótese nova de cosmogonia que não é absolutamente absurda e improvável.” Isso se torna claro quando o narrador se pergunta: “Há um sistema, uma ordem, uma economia de coisas, pela qual a matéria pode preservar aquela agitação perpétua que parece essencial a ela e ainda manter uma constância nas formas que produz?” A resposta é simplesmente afirmativa: “Certamente há uma tal economia”[2].

Vemos, portanto, um convívio entre a “agitação perpétua” essencial à matéria e “uma constância nas formas” produzidas. Desse modo, embora de forma pontual e incipiente, observamos em Hume como o processo de ordenação está intimamente ligado a uma contínua e eterna revolução. Nesse processo, não há qualquer esboço de conclusão, uma vez que, nas palavras de Philo, o caos “é garantido até o fim”. Talvez aí a forma ou a ordenação seja conquistada através do próprio caos e não por uma intervenção externa de qualquer ordem. Além disso, uma paralisação e cristalização em um momento final não seria possível. Dá-se aí um privilégio, não apenas do devir ou da constituição de uma forma, mas do devir forma.

Trata-se, portanto, de uma afirmação radical. Todavia, devemos nos lembrar que de modo algum essa mudança de paradigma é restrita apenas à filosofia. No mesmo período surge na política, a era das revoluções; na economia, a teoria liberal de Adam Smith; e mais tarde, na biologia, a tese da evolução das espécies de Darwin. O solo comum presente em todas essas manifestações do pensamento humano é o de que a desordem é intimamente relacionada ao estabelecimento de qualquer ordem possível. Em outras palavras, a desordem é produtiva e aquilo que ela produz pode, inclusive, ser algo de desejável.

Notas:

[1] HUME, David. Dialogues concerning Natural Religion. In: ______. Hume's Dialogues concerning Natural Religion, p. 184. Ver também a tradução alemã em HUME, David. Dialoge über natürliche Religion, p. 92-93.
[2] HUME, David. Dialogues concerning Natural Religion, p. 183.

Uma Breve História do Caos: Do Xáos ao Chaos.

Esse longo percurso da antiguidade à modernidade exige, entretanto, um cuidado filológico; um tratamento mais apurado daquilo que poderia ser considerado a “mesma” palavra. Esse tratamento pode apontar para grandes variações semânticas onde somente pequenas variações fonéticas são percebidas. Por isso, a valorização do chaos em Hume não pode ser imediatamente comparada com a desvalorização do xáos em Platão ou em Aristóteles, ou com a nadificação do chăŏs em Nicolau de Cusa, em Agrippa, Descartes, ou em Leibniz. Se em todos eles o sentido de caos parece estar próximo do que modernamente poderíamos chamar de desordem, essa desordem assumiu ao longo da história da filosofia aspectos bastante distintos: para os antigos (mais precisamente, os gregos), ela assumiu a forma de uma cisão[1], de uma ruptura a partir da qual surge o mundo; por outro lado, para os modernos, ela assume a forma de uma profusão de encontros não-delineados, indefinidos, como em uma mistura violenta e ininteligível. Embora sejam sentidos diametralmente opostos (uma cissura irascível versus uma unidade disforme e violenta), em ambos os casos, encontramos o sinônimo de desarmonia: ou bem uma desarmonia da separação produzida pelo xáos grego, ou bem uma desarmonia da fusão no emaranhado do caos moderno.

Uma das formas pela quais podemos verificar essa inversão do caos, de cissura à unidade, pode ser, por exemplo, através de uma leitura de Aristóteles, no original, comparando-a com a tradução moderna do mesmo texto. Na passagem que escolhemos, quando o ex-discípulo de Platão retoma a unidade ou a mistura presente em Anaxágoras e em outros pré-socráticos, essa mesma mistura passa a ser considerada, aos olhos dos tradutores modernos, como algo caótico. Mas, como podemos ver, esse caos não está presente na letra de Aristóteles:

“tudo é gerado a partir do ser, mas do ser em potência e não em ato. E este é o ‘um’ de Anaxágoras; pois tanto o seu ‘tudo unido’ (homoú pánta), como a ‘mistura’ (mígma) de Empédocles e de Anaximandro, como também a doutrina de Demócrito seria expressa melhor como ‘tudo é uno em potência, mas não em ato.’” [2]

Desse modo, Aristóteles não rejeita a unidade de todas as coisas na origem, mas apenas a corrige, mostrando que essa unidade não existe em ato mais apenas em potência. Porém, mais do que isso, o importante é que ele não identifica essa unidade com o caos, como fazem os modernos em suas traduções. Por exemplo, na tradução da mesma passagem feita pelo filósofo e tradutor alemão Adolf Lasson[3] (1832-1917), publicada em 1907, onde se lê homoú pánta" (literalmente, “tudo unido”), Lasson traduz “chaotisches Durcheinander[4] (cuja melhor tradução para o português é “confusão caótica”). Essa compreensão do que seja o caos está presente em uma infinidade de autores modernos, mas em nenhum grego, simplesmente porque a palavra xáos (em grego) não permite essa identificação com a unidade. Por outro lado, de Shakespeare a Novalis, encontramos inumeráveis formas dessa identidade entre caos e a profusão de encontros não-delineados, indefinidos e ininteligíveis. No fragmento 95 de Pólen, por exemplo, Novalis afirma:

“Antes da abstração tudo é uno, mas uno como o caos; depois da abstração tudo está novamente unido, mas esta união é uma ligação livre de seres autônomos, autodeterminados. A partir de uma turba desenvolveu-se uma sociedade, o caos foi transformado em um mundo múltiplo.”[5]

Por isso, por compartilhar do mesmo pensamento de sua época (do mesmo solo em que pensaram seus contemporâneos), Lasson, ao verter o “tudo unido” como “chaotisches Durcheinander”, na verdade estava interpretando essa unidade como caótica. Mas a unidade, para um grego, vem de Eros e não de Caos, e simplesmente por essa razão ela é valorizada. Para o moderno, ao contrário, essa unidade é falta de esquadrinhamento, falta de divisão, enfim, falta de ordem — ordem que se expressa como “cada lugar para uma coisa; cada coisa em seu lugar”.

Notas:

[1] Isso inclusive se sustenta etimologicamente, cf. LIDDELL; SCOTT. Greek-English Lexicon, p. 1976. Ver também Xános e Xánuw, respectivamente, “boca” e “falar com a boca bem aberta” (Idem, ibidem). Assim, Heidegger interpreta também Xáos como “bocejo”, o que se fende em dois (auseinander klaffen), cf. HEIDEGGER. Nietzsche II, p. 91.
[2] Ver ARISTÓTELES. Metafísica (1069b 20-4). Edição bilíngüe de W.D. Ross.do. , que entretanto, a partir de Hume estx unidade
[3] Filósofo e professor na Universidade de Berlim, além de tradutor de Aristóteles e Giordano Bruno.
[4] ARISTOTELES. Metafísica (1069b 20-4). Trad. Adolf Lasson, p. 163.
[5] NOVALIS. Blüthenstaub. In: ______. HKA II, p. 454-456.

Uma Breve História do Caos: Caosmos.

Se houve uma inversão no sentido de caos (tal como nos parece e como informam os textos), essa inversão começa a se dissolver quando ordem e desordem passam a ser intimamente inter-relacionadas, como já indicava Hume. Ou seja, quando um jogo dinâmico e instável passa a estar sempre presente na ordenação do mundo. Nesse sentido, a ruptura, a cisão, a separação passam a conviver, lado a lado, com a unidade indiscriminada, a miscelânea, a falta de divisão e de separação. Esse casamento entre Caos e Eros, que em Aristófanes já havia produzido a raça das aves e em Hesíodo havia permitido o nascimento de Éter e de Dia, deixa de ser o encontro primordial entre duas instâncias distintas para se tornar agora um único conceito, uma unidade, a qual, seguindo James Joyce, podemos chamar caosmos.[1] Não mais o caos-ruptura da antiguidade, não mais o caos-unidade da modernidade, mas um casamento entre ambos. Assim, a multiplicidade desordenada quando devém forma produz uma ruptura com o que está a sua volta. De modo inverso essa nova forma é diluída em uma nova multiplicidade. Essa interação entre caos e forma se dá quando cada forma pode se perder mergulhada no todo disforme e novamente ser encontrada em cada parte, numa relação com todas as outras partes desse mesmo todo. Tudo se passa como se uma grande rede de interações impedisse que algo se destacasse, que algo viesse à tona. Mesmo assim, a todo o momento, emergem formas impregnadas dessa miríade de interações caóticas.

A dificuldade em pensar essa junção entre forma e falta de forma está sempre presente em nosso intelecto, o qual funciona como um discriminador que repetidas vezes deduz “ou A possui forma ou A é disforme”. Entretanto, encontramos esse modelo de caosmos numa situação limite da linguagem, isto é, na literatura de James Joyce. Nas palavras de Philip Kuberski: “Joyce estava interessado em ambos, desintegração e recombinação, aniquilação e transmutação”. [2] Neste sentido, o fluxo de linguagem sempre em ruptura e reintegração, faz surgir e se dissolver cada significado mediante a interação de palavras, tal como afirma Catherine Keller:

“O riacho feliz da linguagem de Joyce revela por si (...) não a falta de sentido, mas um excesso de sentido nos quais cada palavra do livro, como toda unidade do universo, vem emaranhada no imprevisível, no alusivo múltiplo, nas interfluências.”[3]

Mas não apenas isso, o conceito de Joyce segue em consonância com a moderna teoria do caos, onde analogamente uma profusão de interações dá à luz a fenômenos naturais distintos, que mais uma vez interferem no mesmo sistema de onde surgem, promovendo assim sempre uma relação de instabilidade.

“Foi dito que o chaosmos de Joyce pressagia a ciência do caos, tal como se aprende a conjugar as multiplicidades incontáveis de interações entre a ponta de uma asa de uma borboleta, uma brisa, um rio, um oceano, uma tempestade distante.”[4]

Essa consonância entre Joyce e as modernas teorias do caos findam por nos levar de volta à Grécia em seus primórdios. Não mais a Hesíodo e seu deus da cissura, mas a filósofos como Heráclito e também Epicuro. Nesse sentido, é interessante notar como a teoria do caos foi capaz de recuperar uma filosofia que permaneceu sempre à margem durante séculos. Assim, Prigogine não deixa dúvidas ao afirmar: “Foi Epicuro o primeiro a estabelecer os termos do dilema a que a física moderna conferiu o peso de sua autoridade.”[5] Epicuro não se interessava pelo deus Caos (como Hesíodo), nem possuía um discurso sobre uma união desordenada e primordial (como Anaxágoras e Anaximandro), a contribuição do filósofo grego foi bem mais sutil. Ela diz respeito a uma associação entre a auto-organização e a falta de equilíbrio e instabilidade do mundo. Em outras palavras, ela privilegia uma desordem intimamente ligada à ordem, mais uma vez, numa espécie de caosmos.

Esse chaosmos, presente no clínamen de Epicuro e intuído de maneira pontual no filósofo escocês não poderia passar despercebido no campo das artes, onde tal união foi excepcionalmente valorizada. Na estética esse novo caos ganhou espaço, justamente para explicar uma nova forma de obra de arte. Mas a importância do caos no campo das artes se dá também por uma outra razão. Esse campo é o lugar privilegiado onde a criação encontra o seu momento mais extremo; onde a invenção tem o seu ponto mais alto; onde surgem qualidades, “jamais vistas, jamais pensadas.”[6] Por essa razão, entendemos que uma compreensão mais apurada do conceito de caos implica numa compreensão do universo artístico no qual ele está inserido, tal como esse conhecimento implica numa estética do caos.

Notas:

[1] Tomamos emprestado aqui a expressão de James Joyce: "[E]very person, place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time" (JOYCE, J. Finnegans Wake, p. 118). O conceito filosófico, entretanto, vem de Deleuze, o qual (ao menos provisoriamente) nos parece o mais apropriado para explicitar essa fusão entre ordem e desordem, cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido, p. 269-70. Essa ordem, que não se opõe ao caos, o filósofo Francês encontra também em Nietzsche. Todavia, se compreendemos corretamente o conceito de Deleuze, nos parece que Schelling merece o privilégio de ter sido o primeiro a intuir a fusão entre ordem e desordem no âmbito das artes.
[2] Chaosmos: Literature, Science, and Theory, p. 64.
[3] KELLER. C. Face of the Deep: A Theology of Becoming, p. 12.
[4] Idem, ibdem.
[5] PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas, p. 17.
[6] GUATARRI, Félix. Caosmose, p. 135. Apesar de concordarmos com Guatarri, precisamos admitir que não apenas nas artes, mas também na guerra encontramos um lugar privilegiado onde há um jogo entre caos e criação. Todavia, o tratado de Clausewitz sobre a guerra somente é publicado em 1837, bem depois das primeiras reflexões sobre a relação entre caos e criação artística.

domingo, outubro 15, 2006

Heráclito entre Hegel e Nietzsche

MORAES. Jorge. HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE. In: MORPHEUS. Rio de JAneiro: UniRio, No. 06 - 2004.

ABSTRACT
In the present paper I intend to confront Hegel and Nietzsche's thought in the light of the so-called tragic Philosophy. I will evaluate specifically Hegel's prominence as a tragic philosopher. Firstly, I will characterize tragic philosophy in its relationship with a possible affirmation of being, in order to finally ascertain this relationship in Hegel and in Nietzsche. In this course, however, I will use Heraclit as a reference, in nietzschian as well as in Hegelian speech. Should I be successful, we will see that Hegel's philosophy, in spite of containing a valorization of time and transitivity, sees being in the teleological realm; parting, as such, from a tragic philosophy proclaimed by Nietzsche.

RESUMO
Nesse artigo pretendo confrontar o pensamento de Hegel e de Nietzsche à luz da chamada filosofia trágica. Trata-se especificamente de avaliar a proeminência de Hegel como filósofo trágico. Nesse sentido, visamos primeiramente caracterizar a filosofia trágica em sua relação com uma possível afirmação do devir, para finalmente apontar essa relação em Hegel e em Nietzsche. Nesse percurso, entretanto, tomaremos Heráclito como referência, tanto no discurso nietzschiano, quanto no hegeliano. Caso tenhamos sucesso, veremos que a filosofia de Hegel, apesar de conter uma valorização do tempo e da transitoriedade, acaba por determinar esse devir no âmbito da teleologia; distanciando-se assim da filosofia trágica proclamada por Nietzsche.


HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE


Em sua Introdução à Filosofia da História de Hegel, Jean Hyppolite afirma a proeminência do autor da Fenomenologia do Espírito com relação a uma visão trágica do mundo. Segundo ele:
o conceito de destino está carregado de sentido e parece escapar às análises da razão. É um conceito irracional, muito mais do que a idéia de positividade; é à visão trágica que Hegel vai buscar, uma visão trágica que com Hölderlin e antes de Nietzsche, apercebe o pano de fundo sombrio da serenidade helênica. 1

O problema que esta afirmação de Hyppolite traz à tona pode ser resumido numa única e breve questão: a filosofia dialética de Hegel seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche? A de se notar, entretanto, que o próprio Hyppolite, ao advogar a proeminência de Hegel com relação à visão trágica, faz menção ao autor de Zaratustra . E não poderia ser de outro modo, pois isso realmente se faz necessário ao menos por uma simples razão: nenhum outro filósofo antes de Nietzsche se autodenominou um filósofo trágico; e mais do que isso, nenhum outro filósofo, além de Nietzsche, se auto-proclamou o “primeiro filósofo trágico ” 2, ou o inventor do trágico, mesmo em detrimento aos filósofos gregos. Portanto, para desbancar Nietzsche, como deseja Hyppolite, nada mais justo do que se conhecer o conceito nietzschiano de trágico e verificar se ele é compatível com a filosofia hegeliana e então verificarmos se Hegel pode ter sido um precursor da filosofia trágica.

Todavia, embora Nietzsche se considere o primeiro filósofo trágico, é certo que ele não elimina a possibilidade de um antecessor. Neste sentido, ele postula o obscuro Heráclito como pensador que talvez tenha compreendido o trágico. 3 Justamente aí se destaca uma importante proximidade com Hegel, autor que também tanto prezava o filósofo de Éfeso. Diante dessa proximidade entre Hegel e Nietzsche, tentaremos através de Heráclito estabelecer um elemento distintivo entre que talvez possa caracterizar a chamada filosofia trágica. Numa palavra, tentaremos confrontar Hegel e Nietzsche através de Heráclito.

Desde de 1870 Nietzsche, como jovem professor de filologia, já esboçava suas teses sobre filosofia trágica. Naquela época, entretanto, eram elas restritas apenas aos alunos que acompanhavam seu curso na Universidade da Basiléia sobre os filósofos pré-platônicos, mais precisamente, nas aulas sobre Heráclito. Depois de uma explanação geral sobre a vida e o pensamento do filósofo de Éfeso, Nietzsche afirma:

"No fundo, ele é o contrário de um pessimista. Por outro lado, ele não é nada otimista: pois ele não nega o sofrimento e a desrazão: a guerra mostra-se para ele como o eterno processo do mundo (...); isto é genuinamente helênico. Há nele uma harmonía, mas uma [harmonia] baseada na discordância palíntropos [discordante] "4

Naquelas anotações dos cursos de 1870-71, o jovem professor ainda não havia dado um nome a esse pensamento (nem pessimista, nem otimista) de Heráclito. A harmonia “baseada na discordância [discordante]” ainda não possuía uma denominação. Mas fica bastante clara a intenção de apresentá-lo por oposição aos demais.

Um ano depois (ao publicar sua primeira obra), Nietzsche fala de Heráclito como o filósofo contemporâneo de um grande evento, o nascimento da tragédia. 5 Morta "em conseqüência de um conflito insolúvel, portanto tragicamente" 6, o renascimento da arte trágica se daria finalmente a partir da música alemã, a qual Nietzsche compara à filosofia heraclítica:

"que o mentiroso e o hipócrita tomem cuidado com a música alemã: pois justamente ela é, em meio a toda a nossa cultura, o único espírito de fogo limpo, puro e purificador, a partir do qual e para o qual, como na doutrina do grande Heráclito de Éfeso, se movem em dupla órbita circular todas as coisas: tudo o que chamamos agora de cultura, educação, civilização terá algum dia de comparecer perante o infalível juiz Dioniso." 7

O fogo de Heráclito, presente tanto nos acordes da música alemã como na tragédia grega arcaica, seria capaz de incendiar a cultura ocidental, reformulando-a a partir das cinzas. A música que Nietzsche considerava apolínea serviria então como instrumento de transformação nas mãos do “infalível juiz Dioniso”.

No entanto, esse movimento atribuído à doutrina de Heráclito não se resume a uma mera reformulação, cujo fim seria uma nova cultura pronta e acabada. Longe disso, com a “ajuda da relação musical da dissonância", Nietzsche descreve o "fenômeno dionisíaco que toma a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer”. 8 Como filósofo trágico, Nietzsche já comparava esse fenômeno à filosofia de Heráclito, para o qual o jogo de criação e de destruição do universo tem um caráter espontâneo, não visando qualquer fim - tal como “uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.” 9 Seguindo as prescrições do autor do Nascimento da Tragédia, essa nova cultura deveria estar também inserida num infinito movimento, nunca resolvido, nunca acabado, mas sempre em aberto, sempre dinâmico, tal como as dissonâncias não resolvidas de Tristão e Isolda, as quais (poucos anos antes) revolucionavam a concepção de harmonia da época na Europa e se tomavam a esperança de Nietzsche com relação ao futuro da música alemã.

Já em 1873 (portanto, um ano após a publicação de seu primeiro livro), Nietzsche produz um ensaio onde a figura do filósofo obscuro reaparece: A filosofia na época trágica dos gregos. Neste escrito, ele mostra o que há de comum entre Schopenhauer e Heráclito: para ambos a natureza existe somente por causa de uma luta constante, de um eterno conflito. Todavia, diferentemente de Heráclito, para Schopenhauer, essa luta “não passa de uma prova da auto-cisão da vontade de vida, uma autocorrosão deste instinto sombrio e confuso; é um fenômeno absolutamente horroroso, nada beatificante.”10 Nietzsche mostra como o pessimista de Frankfurt julga negativamente o conflito eterno, "o jogo de Zeus". 11 Entretanto, para o Heráclito nietzschiano, o conflito ganha um caráter positivo: não apenas tudo "acontece de acordo com essa luta", mas também “é essa luta que manifesta a justiça eterna.” 12 Deste modo, o conflito é visto como justo e a justiça é vista como existindo apenas no interior do conflito.

Nietzsche mostra assim como o jogo de Zeus ou o jogo da criança (presente tanto nos cursos de 1870-1, quanto no Nascimento da Tragédia e no ensaio de 1873) passa a ser "uma metáfora sublime" utilizada pelo filósofo de Éfeso. Ela designa o fogo eterno, "um devir e um declínio sem qualquer justificação moral". 13 Para Nietzsche, entretanto, por Heráclito não ser um homem artístico, “ele recorre à imagem do jogo da criança”, que Nietzsche encontra também nas artes: “Aqui reina a inocência, mas também a criação e a destruição”, 14 acrescenta o jovem professor. Para Heráclito, o jogo inocente e sem propósito é uma metáfora da natureza, 15 mas Nietzsche encontra na arte essa mesma metáfora. A arte inocente e sem propósito passa a figurar como um modelo para compreender o eterno e despropositado movimento de criação e destruição da natureza. Nesse sentido, o único propósito que poderia ser atribuído a esta arte, passa a ser a afirmação de seu próprio movimento, reflexo do prazer do artista em realizar sua arte, sem nenhum objetivo exterior a essa realização, a não ser sua própria participação no devir arte de sua obra.

É com Nietzsche e Heráclito, que encontramos no devir um elemento central na filosofia trágica. Mais do que isso, se evidencia um gosto especial pelo devir e suas conseqüências — o qual Nietzsche mais tarde denominaria amor fati. Todavia, ainda não seria por esse viés que lograríamos diferenciar Nietzsche de Hegel, tal como o próprio autor de Zaratustra destaca:

"Nós alemães, somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse existido um Hegel, na medida em que (ao contrário de todos os latinos) damos instintivamente ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, um valor mais profundo e mais rico do que aquilo que ‘é' - nós mal acreditamos que se justifique o conceito de 'ser' —" 16

Só esta afirmação de Nietzsche já justificaria a tese de Hyppolite. Além disso, o valor atribuído por Hegel à doutrina de Heráclito (a mesma que inspirou Nietzsche) nos leva mais uma vez a nossa questão: a filosofia dialética de Hegel não seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche?

Todavia, quando lemos o conteúdo dos cursos que Hegel escreveu sobre estética, mais precisamente no que se refere à arte trágica, tal proeminência poderia parecer estranha ou até mesmo inadequada. Lá a tragédia é vista à luz de um conflito entre forças que são, na verdade, particularizações de uma totalidade. Contrapostas, tais forças são igualmente corretas, mas também equivocadas. Nesse sentido, uma peça exemplar para Hegel seria Antígona. Do conflito que nasce entre elas não necessariamente deveria surgir constrangedora a exigência de uma resolução, ou de uma síntese, um fim. Mas essa exigência faz-se presente para Hegel e a sua dialética. Por isso, ao fim de toda luta, faz-se necessária a resolução, ou mais precisamente, uma espécie de reabsorção das forças particulares no interior do todo:

"Logo, tão legítimo é o fim e o caráter trágico como necessária é a solução desse conflito. Com efeito, assim se realiza a justiça eterna nos fins e nos indivíduos, restabelecendo-se a sua substância e unidade morais pela supressão da individualidade que perturbava o repouso." 17

Mesmo assim, esta reabsorção das forças particulares pela totalidade poderia ser vista como não sendo de todo apaziguadora. Mas não parece ser esse o caso. Hegel, tal como Nietzsche também utiliza o fenômeno musical da dissonância. Todavia, para se diferenciar do autor do Nascimento da Tragédia, afirmando “que a harmonia surja como resultado dela [da dissonância], por meio da solução do conflito”. 18 Está em jogo, portanto, uma concepção de harmonia própria do movimento romântico, notadamente, a inaugurada por Beethoven: consonância, dissonância e resolução. Análoga a ela, encontramos o modelo marxista de dialética atribuída a Hegel: tese, antítese e síntese - os três tempos do compasso hegeliano. Todavia, essa síntese bem poderia permanecer tensa, instável, dinâmica, tal como afirmam alguns dos grandes intérpretes de Hegel, a fim de valorizar seu pensamento:

"Os opostos são opostos entre si, mas eles não se opõem à unidade. Por certo, a unidade é nada mais que a união, ou síntese, dos opostos. Ela não é imobilidade, e sim movimento. Ela não é fixidez, mas desenvolvimento. (...) o concreto universal, com suas sínteses dos opostos, expressa a vida e não o cadáver da vida; ele fornece a fisiologia e não a anatomia do real." 19

Esta expressão da vida, como salienta Croce, se dá através do "movimento". Portanto, ao fim da dialética hegeliana, deveríamos ter não um mero ponto final, mas sim as oscilações que caracterizam a vida e suas vicissitudes. Pelo mesmo caminho, argumenta Francis Fukuyama, esclarecendo que o polêmico fim da história em Hegel não corresponderia a um fim dos conflitos ou eventos significativos para a humanidade, mas um fim do "processo evolutivo" das formas de governo ou de organização das "sociedades humanas". Conforme assinala Fukuyama:

"Isto [o fim da história em Hegel e Marx] não significava que o ciclo natural de nascimento, vida, e morte terminaria, que eventos importantes já não aconteceriam, ou que os jornais que os informam cessariam ser publicados. Significava, antes, que não haveria nenhum progresso adicional no desenvolvimento de princípios subjacentes e instituições, porque todas as perguntas realmente significativas já haviam sido resolvidos." 20

Mesmo assim, se as análises de Croce e de Fukuyama estiverem corretas (embora, segundo Lefebvre e Gérard Lebrun, isto seja um equivoco) 21, a estética da tragédia de Hegel e, como vimos, sua "supressão da individualidade que perturbava o repouso" acaba por comprometer uma possível filosofia trágica hegeliana. Se ela existe, de modo algum foi enunciada em seus cursos sobre a tragédia. Vemos assim, finalmente, o que está em jogo no conceito de trágico: a noção de fim, de conclusão, ou resolução. Se essa conclusão for sinônimo de repouso, ela jamais poderá ser trágica. Pois lhe faltaria o movimento próprio da vida.
Todavia, haverá quem também perceba nas reflexões nietzschianas sobre a tragédia um "cheiro indecorosamente hegeliano" 22 e, a partir daí, veja na relação entre ApoIo e Dioniso uma forma possível da dialética de Hegel - o que bem poderia ser justificado pela influência indireta de Feuerbach através da figura de Richard Wagner na obra de Nietzsche. Desse modo, nos perguntamos se talvez a filosofia trágica de Nietzsche não se faça presente em seu discurso sobre a tragédia?

Esta é, porém, uma hipótese pouco provável, por várias razões. A primeira delas encontra-se a poucas linhas da própria afirmação de suspeita de Nietzsche. (1) Como sua obra poderia ser dialética se "a verdadeira oposição" 23 apresentada por ela se dá entre Dioniso e Sócrates? Esta oposição tem como resultado a morte da tragédia e não qualquer tipo de síntese. (2) A relação entre ApoIo e Dioniso se mostra, em várias passagens, conflituosa e em várias outras, harmoniosa: "luta incessante e onde intervêm periódicas reconciliações" 24. Nunca estão absolutamente unidos, nem totalmente separados. Sua relação aparece sempre de forma dinâmica, ou energética, tal como na relação entre consonância e dissonância da harmonia inaugurada por Richard Wagner em Tristão e Isolda. A harmonia de sua união reside justamente na tensão produzida pelo encontro de ambas as pulsões: apolínea e dionisíaca - tal como se fossem os pólos de uma bateria. (3) A supremacia de Dioniso sobre Apolo, identificada por vários comentadores, também nos leva a conceber um tipo de relação não dialética, uma relação de outra ordem. Tudo se passa como se Apolo fosse a expressão de Dioniso. Deste modo, o deus Dioniso aparece no palco individualizado na figura apolínea do protagonista da tragédia. Afinal, quem é mais apolíneo do que Édipo, que quer estabelecer a ordem em Tebas e punir com sua ira todos os culpados? Todavia, essa individualização apolínea se dissolve no terrível fim do herói trágico. (4) A história dos contratempos que envolveram a publicação de O Nascimento da Tragédia mostra uma obra que foi concluída sob o signo de concessões, subtrações, acréscimos, mudanças de direção etc. Por tudo isso, podemos dizer que este é um texto difícil, pleno de contradições e imprecisões. Essas dificuldades, entretanto, têm levado vários interpretes à tentação de simplificar o que não é de modo algum simples, reduzindo este primeiro livro de Nietzsche a uma ou outra influência de juventude: Wagner, Schopenhauer etc. Por esta razão, é preciso se precaver e encarar esta obra com suas dificuldades e dar-lhe um sentido unificado apenas onde isso for possível. Deste modo, considerando justamente a miscelânea assistemática que forma O Nascimento da Tragédia, mesmo que de fato a filosofia trágica de Nietzsche ainda não se encontra ali pronta e acabada, cabe compreender que nessa obra complexa estão contidos (ainda que misturados e emaranhados) os elementos principais da filosofia trágica nietzschiana. 25

Quanto a nossa questão original, talvez encontremos a chave para a sua resposta justamente num visível ponto em comum entre Nietzsche e Hegel, o apreço para com a doutrina do obscuro Heráclito.

Em seu Curso sobre a História da Filosofia, o próprio Hegel afirma sem nenhuma reserva: "Não há uma sentença de Heráclito que eu não tenha acolhido em minha lógica." 26 Nesta lógica, porém, Hegel anuncia a prioridade do Ser: "O ser puro constitui (macht) o começo, porque ele é tanto pensamento puro, quanto incerto e simples imediato. Porém, o primeiro começo não pode ser nada de mediato e ainda determinado.” 27 Tudo isso faz com que o ser guarde também uma íntima relação com o nada: "Este ser puro agora é a pura abstração, para ser o negativo absoluto, o qual tomado do mesmo modo em sua imediatidade, é o nada.” 28 Como síntese, união desses conceitos opostos (e intimamente relacionados), surge o devir: "O nada, como este imediato, é similar a si mesmo, e inversamente o mesmo que o ser. A verdade do ser tal como a do nada, portanto, é a unidade de ambos; esta unidade é o devir.” 29 Esta mesma relação já aparecia na anterior Ciência da Lógica: o ser como um a priori do pensamento e, como tal, uma forma vazia, abstrata e, portanto, equivalendo a um nada. Por fim, a união concreta e materializada do ser e de seu oposto - ser e nada consumados no devir.

Nesta lógica, o fato de o ser se encontrar em primeiro lugar, de modo algum, postula para ele um valor mais elevado. O devir sim, como síntese das abstrações de um ser que equivale a um nada, passa a ser considerado como ponto mais elevado. O devir como síntese, como ponto final de uma trajetória lógica, representa um avanço considerável no pensamento ocidental. Situado em segundo plano desde Heráclito, o devir precisaria de um filósofo como Hegel para se tomar novamente o foco do pensamento ocidental.

Todavia, o movimento a que Hegel se refere (este devir como síntese) possui uma característica que o toma muito distante do movimento trágico da filosofia nietzschiana. Ele possui uma teleologia. Ele busca um fim, uma razão na história, uma realização concreta do Ideal em sua união com o Real. Essa teleologia percorre toda a obra de Hegel, da Fenomenologia do Espírito à Filosofia da História.

Em Nietzsche, entretanto, vemos o oposto. Como jovem estudante de filologia, ele já se colocava ao lado de Kant contra as teses teleológicas. E já parecia consciente da íntima relação entre tais teses e o otimismo vigente: "Otimismo e teleologia caminham de mãos dadas” 30, escrevia em 1867. Num sentido completamente oposto, em Hegel a história caminhava em direção à união entre o Ideal e o Real, onde o espírito deve conquistar a consciência de si se afastando da natureza, para assim alcançar o ápice de sua própria essência: a liberdade. Nas palavras de Hegel: "A liberdade encontrou a chave para realizar seu conceito como sua própria verdade. Esta é a meta da história mundial, e nós temos que percorrer o longo caminho que simplesmente é claramente estabelecido.”31

Em Nietzsche, principalmente quando ele interpreta Anaxágoras e Heráclito, esse conceito de liberdade (próprio do otimismo alemão) assume um outro caráter. Esta liberdade não é subordinada a uma meta histórica, como em Hegel. Para Nietzsche, "esse querer absolutamente livre só pode pensar-se como desligado de qualquer fim, à maneira de um jogo de crianças ou do jogo do instinto artístico.” 32 Liberdade, portanto, passa a estar intimamente relacionada a encontros fortuitos, ao acaso, ao jogo instintivo do artista.

Deste modo, compreendendo o pensamento trágico de Nietzsche, tal como ele mesmo o expressou, como tendo um possível precursor em Heráclito (i.e. em sua doutrina do jogo inocente e despropositado da criança), seria impossível identificar esse mesmo pensamento trágico na filosofia de Hegel: uma filosofia que dança somente em compassos ternários, cujos passos permanecem obedientes a um fim bem preciso e determinado. A adesão à vida, como princípio da filosofia trágica, não comporta um único compasso, tampouco a obediência a predeterminações. O passo da dança deve acompanhar a música da vida. Por isso, a filosofia trágica não pode ter um fim no duplo alcance do termo: (1) nem fim como conclusão, acabamento, resolução do movimento; (2) nem fim como meta, objetivo ou predeterminação do mover-se.

Neste sentido, se a filosofia de Hegel é uma filosofia do devir, como a de Nietzsche, ela não pode ser considerada trágica, porque esse devir percorre um caminho já previamente traçado e esquadrinhado. Embora o devir não seja expulso do pensamento, ele é aprisionado pela filosofia hegeliana em um projeto previamente elaborado.

Notas:

1 HYPPOLITE , Jean . Introdução à Filosofia da História de Hegel . Trad. José M. Lima. Lisboa: Elfos, 1995, p. 45.
2 NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, Kritische Studien Ausgabe. Berlim: Walter De Gruyter, 1988, vol. VI, p. 312 (doravante, KSA VI , p. 312).
3 Cf. NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, KSA VI , p. 312-3.
4 NIETZSCHE. Os filósofos pré-platônicos. ln : ______, Kritische Gesamtaugabe. Berlin: Walter De Gruyter, 1995, Tomo II, vol. 4, p. 282 (doravante, KGW II4 , p. 282).
5 Cf. NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 78.
6 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 75.
7 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 19. In: ______, KSA I , p. 127-8.
8 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
9 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
10 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §5 . In: ______, KSA I, p. 826.
11 Ibid., p. 374.
12 Ibid., p. 372.
13 NIETZSCHE. Die vorplatonischen Philosophen. In: ______, KGW II4 , p. 278.
14 Idem, Ibidem .
15 Cf. HERÁCLITO. Frag. 52. In: Diels-Vorsokr. Die Fragmente der Vorsokratiker 2 vol. 4a ed. Bilíngüe de DIELS, Herma nn. Berlin: Weidmannsche, 1922, vol. 1, p. 88: “O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.”
16 NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 357. In: ______, KSA III , p. 399.
17 HEGEL. Curso de Estética II. In: ______, Werke 20 vol. Frankfurt am Main: Suhrkamp,1970, vol. 15, p. 524 (doravante W 15 , p. 524).
18 HEGEL, Curso de Estética I . In: ______, W 13 , p. 268. Passagem traduzida por GONÇALVES, Márcia. O belo e o destino. São Paulo: Loyola, 2001, p. 290.
19 CROCE, Benedetto. "The Dialectic or Synthe sis of Opposites". In: ______, What is Living and What is Dead of the Philosophy of Hege!. Trad. Ainslie, Douglas. Lanham: University Press of América, 1985.
20 FUKUYAMA, Francis. By way of an introduction. In: ______, The end of History and the last man. New York: Avon Books, 1993, p. xii.
21 Ver LEFEBVRE, Lógica Forma/Lógica Dialética. Trad. Carlos Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 173 e LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética Hegel à luz de Nietzsche . Trad. Renato Janine Ribeiro São Paulo: Companhia das Letras , 1988, p. 101-2.
22 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 310 .
23 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 311.
24 NIETZSCHE . O Nascimento da Tragédia , § 1. In: ______, KSA I , p. 25.
25 Estes quatro pontos encontram-se desenvolvidos em minha dissertação de mestrado ______, O Pensamento Dissonante. Dissertação de Mestrado em Filosofia IFCS- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
26 HEGEL. Curso de história da Filosofia. In: ______, W XVIII , p. 320.
27 HEGEL. Plano para enciclopédia das ciências filosóficas. ln: ______, W VIII , p. 182-3.
28 Idem, Ibidem , p. 186.
29 Idem, Ibidem, p. 188.
30 NlETZSCHE, Zur Teleologie. ln: ______, Jugendschriften em 5 vol.. München: Beck. Vol. III, p. 371 (BAW III, p. 371).
31 HEGEL. Curso de Filosofia da História. In: ______, W XII , p.141.
32 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §19. ln: ______, KSA I , p. 872.

Nietzsche: a Filosofia Trágica a partir da Música

MORAES, Jorge. Nietzsche: a filosofia trágica a partir da música. In: Ítaca, 4: 2003, p. 122-130.

Nietzsche: a Filosofia Trágica a partir da Música

Friedrich Nietzsche, filólogo, filósofo, mas também poeta e compositor, dedicou boa parte de sua obra à investigação da arte musical. Escreveu para isso: O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, A Visão Dionisíaca do Mundo, Richard Wagner em Bayreuth, O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, além de uma série de fragmentos publicados postumamente. Vemos assim a importância que Nietzsche deu a esta modalidade artística — nas palavras de Karl Jaspers: "Nenhum outro filósofo foi tão completamente imbuído pela música ou a achou tão irresistível".1 O próprio Nietzsche, mesmo já distante de seus primeiros escritos, onde a música era um tema recorrente, afirma ao amigo Peter Gast: "A música agora me traz experiências como realmente nunca tive antes. Ela me torna sóbrio e me desprende de mim mesmo (...), e fazendo isso ela me fortalece. Cada tarde de música é seguida por uma manhã cheia de resolutos discernimentos e idéias. (...) A vida sem música é simplesmente um erro, um fastio, um exílio".2 Somente esta última afirmação (repetida também em uma de suas obras tardias) já nos dá uma amostra da importância que Nietzsche atribuiu à arte musical — "Sem música, a vida seria um erro".3
Entretanto, enquanto a música ganha uma importância vital no pensamento nietzschiano, nosso autor se apresenta também (em sua autobiografia) como sendo "o primeiro filósofo trágico"4, ou ainda (em suas anotações), como "o primeiro a descobrir o trágico".5 Verificamos, assim, que tanto o conceito de trágico quanto a arte musical assumem um papel central na filosofia de Nietzsche — muito embora mesmo os comentadores mais recentes não tenham ainda se debruçado sobre essa questão.

Georges Liébert, autor de Nietzsche et la Musique, mostra como, a partir da apologia nietzschiana à arte musical, pode-se chegar a duas interpretações distintas: (1) onde "a música faz esquecer a vida", tal como um narcótico que torne a existência algo de suportável; (2) onde "a vida só pode ser conhecida a partir da música", mas de um modo especial, onde "o prazer de existir culmina dentro da experiência musical".6 Ambos os sentidos, em momentos isolados, são possíveis em Nietzsche. Num primeiro momento, quando, influenciado por Arthur Schopenhauer, ele escreve O Nascimento da Tragédia (de 1872), obra na qual encontramos características significativas do "pessimismo romântico" — sobretudo no que Nietzsche chamou, na época, de "consolo metafísico". Num segundo momento, porém, 15 anos mais tarde, quando Nietzsche fala de um novo pessimismo, de um "pessimismo do futuro", um "pessimismo dionisíaco".7 Tal pessimismo é na verdade uma filosofia trágica, "uma compreensão e perspectiva trágica da vida".8 Nietzsche passa a se considerar então como "o primeiro filósofo trágico".9 Somos levados assim à inevitável questão: o que é ser um filósofo trágico? O que é esse tipo de filosofia? Que significa filosofia trágica em Nietzsche? A esta pergunta ele mesmo responde da seguinte forma: "(...) o conhecimento definitivo sobre o que é a psicologia da tragédia, eu o expressei ainda no Crepúsculo dos Ídolos. ‘O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos — a isto chamei dionisíaco, isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico (...)’".10
Todavia, esta resposta guarda consigo ainda um problema: seria preciso definir o que significa "dizer Sim à vida". Neste sentido, nosso objetivo é o de investigar esta questão através da reflexão nietzschiana sobre a música e assim aprofundar nossa compreensão a respeito do que Nietzsche chamou de filosofia trágica. Pretendemos, portanto, esclarecer a relação entre música e trágico na filosofia nietzscheana. Pois, se "o prazer de existir culmina dentro da experiência musical" (como destacou Liébert), a música deverá realmente assumir um papel preponderante dentro da filosofia nietzscheana, isto é, dentro desta filosofia que quer "dizer Sim à vida".

Em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, nosso filósofo nos apresenta uma concepção metafísica da música. Próximo do pensamento de Arthur Schopenhauer, Nietzsche afirma: "Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade".11 A música é vista, portanto, como um instrumento privilegiado do conhecimento, mas num sentido muito especial, que é o de alcançar aquilo que Schopenhauer chamou de vontade interna do mundo, a coisa em si kantiana. Se com Kant este acesso era vedado à razão, todo o romantismo alemão (e não apenas Schopenhauer) encontraria um caminho alternativo para a coisa em si através das artes.
Todavia, já naquele momento (enquanto preparava seu primeiro livro), uma outra perspectiva se anunciava. Nos rascunhos de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche escreve: "A música pode gerar pensamentos? De início imagens, disposições, depois pensamentos".12 Numa carta da mesma época (1871) ele afirma drasticamente: "Tudo o que não se pode compreender por meio de relações musicais produz em mim realmente nojo e repugnância".13 E também, numa das passagens de sua primeira obra publicada: "...hei de me dirigir tão-só àqueles que, diretamente aparentados com a música, têm nela ao mesmo tempo o seu colo materno e se vinculam às coisas quase unicamente através de relações musicais inconscientes".14 — Além de uma apologia da arte musical, o que há de comum entre essas três passagens é que nenhuma delas tem a ver, necessariamente, com a vontade interna do mundo schopenhaueriana (ou com a coisa em si kantiana). As três passagens apontam ou para a produção de pensamentos através da música, ou para um modo musical de ver o mundo. Nos dois casos, para uma visão de mundo musical, isto é, para uma filosofia musical, não necessariamente metafísica.15
Nossa primeira hipótese é que essa visão de mundo musical, ainda incipiente na juventude, se confirmaria nos escritos de maturidade, sobretudo a partir da Gaia Ciência, obra na qual Nietzsche enuncia em poucas palavras: música é vida. "‘Cera nos ouvidos’ foi então quase [uma] condição para filosofar; um autêntico filósofo já não ouvia a vida, à medida que música é vida, ele negava a música da vida — esta é uma antiga superstição de filósofo, que toda música é música de sereias".16
Identificando Nietzsche a arte musical com aquilo que chamou de vida (devir, existência) — tema fundamental em sua filosofia de maturidade —, a música estaria apta a tornar-se filosofia. Como vida, seria ela que, em vez de ser avaliada pelo pensamento teórico,17 passaria então a avaliar toda teoria. Por esta razão Nietzsche pode afirmar: "Juízos, juízos de valor sobre a vida, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintoma (...). É preciso estender os dedos, completamente, nesta direção e tentar captar essa assombrosa finesse — de que o valor da vida não pode ser avaliado. Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão".18
A partir da música ou, mais precisamente, a partir das "relações musicais inconscientes", Nietzsche seria capaz de avaliar as mesmas instâncias que outrora foram utilizadas pela filosofia para avaliar a música. Por exemplo, o cálculo matemático (notadamente utilizado por Sto. Agostinho, Descartes e Leibinz, a fim de explicar o fenômeno musical).19 Contrário a essa visão matematizante, afirma Nietzsche: "A calculabilidade do mundo, a expressibilidade de todos acontecimentos em fórmulas — é isto realmente uma ‘compreensão’? Quão bem compreendida seria uma música, se tudo que nela pudesse vir a ser calculável e reduzido a fórmulas fosse calculado?".20 Mas também, contra a moral, ele afirma: "É a música de nossa consciência, a dança de nosso espírito, com que não podem afinar as litanias puritanas, as prédicas morais e o filistinismo".21 E mesmo contra uma concepção lógico-funcional da linguagem: "— Que martírio são os livros escritos em alemão para aquele que possui o terceiro ouvido! Como se detém contrariado junto ao lento envolver desse pântano de sons sem harmonia, de ritmos que não dançam, que entre os alemães é chamado de ‘livro’!"22 Ou ainda, "que o estilo alemão tem pouco a ver com o som e os ouvidos é demonstrado pelo fato de que justamente nossos bons músicos escrevem mal. O alemão não lê em voz alta, não lê para os ouvidos, mas apenas com os olhos: ao fazê-lo, põe os ouvidos na gaveta".23
Deste modo, Nietzsche, em sua maturidade, alcançaria o ponto máximo da inversão do platonismo:24 em lugar do rei filósofo determinar que música é de fato adequada à Pólis, seria a vez de a música avaliar que teoria é de fato adequada à vida. A filosofia de Nietzsche se definiria, portanto, através de um emblemático imperativo categórico: — "Sócrates, faça música!".25
Todavia resta-nos tentar responder a uma importante questão: se o pensamento nietzscheano se estrutura como música, que tipo de pensamento seria esse? Como se estruturariam as "relações musicais inconscientes" a que Nietzsche se referiu? Que música soaria através deste modo de pensar? Nossa segunda e principal hipótese é que esse pensamento musical guarda a mesma estrutura da filosofia trágica.
A própria escrita de Nietzsche pode ser considerada musical. O seu uso da pontuação produz um ritmo e cadência dignos de um sofisticado compositor; além disso, com o domínio de uma fonologia expressiva, ele delineia as palavras de forma extremamente melódica. Deste modo, ao escrever, Nietzsche produz uma prosa musical. Prosa que já havia encontrado em Hölderlin, seu "poeta favorito" na tenra juventude: "De fato, esta prosa é música, fusão de sons brandos, interrompidos por dissonâncias dolorosas".26 É este elogio a Hölderlin que nos dá indicações não somente sobre o estilo de escrita de Nietzsche, mas também sobre o estilo de sua filosofia.27 A "fusão de sons brandos, interrompidos por dissonâncias dolorosas" nos remete à união dos opostos — musicalmente, nos remete à união entre consonância e dissonância, que em Hölderlin se expressa pelo "divino" ou o "harmonicamente oposto como a unidade contida dentro de si mesmo".28 Esta união dos opostos, em Nietzsche, surge mais tarde, sob a luz de um elogio: "Apenas às custas de ser rico em contradições se é fértil".29
Todavia, para ele, a própria contradição é ilusória: "Não há opostos: apenas a partir da lógica nós temos o conceito de opostos — e falsamente o transferimos para as coisas".30 Por esta razão, Nietzsche então se pergunta: "os axiomas lógicos são adequados ao real [Wirklichen], ou são antes padrões e meios para criarmos para nós o conceito de "realidade" [Wirklichkeit] em torno do real [Wirkliches]?..."31 Para ele, a resposta é negativa: "Enquanto não compreendemos isto e criamos a partir da lógica um critério para o verdadeiro ser, estamos já a caminho de estabelecer como realidades todas aquelas hipóstases: substância, predicado, objeto, sujeito, ação etc.; isto é, de conceber um mundo metafísico, isto é, um "mundo verdadeiro" ( — este é porém, mais uma vez, um mundo aparente)".32 Com isso, nosso autor mostra que a lógica, a partir de sua condição de mera convenção, se estabelece como realidade. Assim, uma configuração gramatical que visa a organizar o real acaba por cristalizá-lo em oposições. Um esquecimento do caráter arbitrário de tal gramática finda por assumir como necessárias tais oposições — elas devem ser de um determinado modo e de forma alguma poderiam ser diferentes.
Por fim, a união dos opostos, em Nietzsche, não é o que poderíamos chamar de um processo a posteriori — tal como uma oposição que resultasse numa síntese.33 O que há desde sempre é uma turbulenta relação de forças (mesmo no campo da linguagem34), onde cada força somente existe interligada a outras e apenas poderia ser separada ou isolada por abstração. Nesta tensa relação, de modo algum se alcançaria um equilíbrio definitivo. Para Nietzsche, nenhuma organização seria de fato definitiva; pois isto seria totalmente avesso ao próprio movimento contínuo de criação e destruição o qual Nietzsche chamou de vida. Neste sentido, ele afirma: "Não se produz na natureza um equilíbrio ‘lábio’, assim como não há dois triângulos congruentes. Por conseguinte, nem mesmo [há] um estado de repouso da força em geral. Se o estado de repouso fosse possível, ele teria intervindo!".35 Numa outra passagem: "Que um estado de equilíbrio não seja nunca alcançado é prova de que ele não é possível".36
Neste sentido, identificamos essa falta de equilíbrio sólido e definitivo como estando presente, tanto no movimento musical que Nietzsche tematizou, quanto no conceito de trágico que marcou sua filosofia. Por isso Nietzsche já identificava (desde 1870-72) o trágico a "um conflito insolúvel"37; ou ainda, a "enigmas verdadeiramente insolúveis da existência humana".38

Vemos, portanto, (1) que a precoce visão de mundo de Nietzsche fundada em "relações musicais inconscientes" se confirmaria e se solidificaria nos escritos de maturidade a partir da premissa nietzschiana "música é vida" e (2) que esse pensamento musical guardaria a mesma estrutura da filosofia trágica, seguindo um modelo instável, contraditório e inacabado.
Procuramos assim evidenciar uma relação musical39 na filosofia nietzschiana, que não se pauta, nem pela mera oposição de elementos isolados, nem pela resolução (ou síntese) dessa oposição. Neste sentido, entendemos que a filosofia trágica poderia finalmente "dizer Sim à vida", isto é, poderia operar no campo das contradições contínuas e não resolvidas. Para isso, contaria com o movimento próprio da arte dos tons (Tonkunst), uma arte da intensidade (toû tónou). — Falando sempre através da "comovedora violência do som"40, a música transformaria em arte o conflito insolúvel que Nietzsche chamou de vida (devir, existência) e, mais do que isso, com uma nova lógica musical41, seria possível introduzir finalmente este mesmo conflito insolúvel na investigação filosófica, dando-lhe movimento. Neste sentido, poderemos compreender, através da arte musical, aquilo que Nietzsche chamou de filosofia trágica: uma filosofia não idealista que procura aderir à vida, isto é, ao contínuo e não resolvido movimento de criação e destruição, cuja analogia mais próxima Nietzsche encontrou na música.

Notas:

1 JASPERS, Karl. Nietzsche. Tradução de Charles Wallraff e Frederick Schmitz. London: John Hopkins, 1997. pp. 32-33.
2 Carta a Peter Gast de 15 de janeiro de 1888. apud. JASPERS, Karl. Nietzsche. op. cit. p. 32.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. Edição organizada por Karl Schlechta. München: Hanser, 1954, vol. II. p. 947.
4 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1110.
5 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1884-1885. In: ______, Kritische Studienausgabe (KSA), Edição crítica em 15 volumes organizada por G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 1988, vol. XI. p. 32.
6 LIÉBERT, Georges. Nietzsche et la musique. Paris: PUF, 1995. p. 107
7 NIETZSCHE, Friedrich. Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 246.
8 NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche contra Wagner. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1047.
9 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1110.
10 Idem, ibidem.
11 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 91.
12 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1869-1874. In: KSA. op. cit., vol. VII. p. 320.
13 NIETZSCHE, Friedrich. Carta a Erwin Rohde de 21 de dezembro de 1871. In: ______, Briefe Band 3: der Basler Zeit,1869-1873. Organizado por Wilheime Hoppe. Munique: C.H. Beck, 1940. p. 178.
14 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 116.
15 Através de uma outra perspectiva, Heidegger afirma que Nietzsche seria "o último Metafísico do ocidente" (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche, IV vol. Tradução de David Farrell Krell. San Francisco: Harper & Row, 1987, vol. III. p. 8). De qualquer modo, ainda que Nietzsche permaneça um filósofo metafísico, há de se compreender que existem grandes mudanças entre a nova metafísica de Nietzsche e aquela de Schopenhauer, voltada para o puro conhecimento da coisa em si através da música. Procurei explicitar essa distância entre Nietzsche e Schopenhauer em MORAES, Jorge. Nietzsche e a metafísica musical. In: Ítaca, n° 3, Rio de Janeiro, 2002. pp. 164-171.
16 NIETZSCHE, Friedrich. Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 247.
17 O que ocorreu ao longo da história da filosofia, de Platão a Kant, como procurei demonstrar em meu artigo MORAES, Jorge. Para uma filosofia da música: Nietzsche, Schopenhauer, Wagner e a estética musical. In: Ítaca, n° 2. Rio de Janeiro, 2001. pp. 142-156.
18 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II, p. 952.
19 Já desenvolvemos essa questão em MORAES, Jorge. Para uma filosofia da música: Nietzsche, Schopenhauer, Wagner e a estética musical. In: Ítaca, n° 2. op. cit.. pp. 142-156.
20 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1885-1887, In: ______, KSA. op. cit., vol. XII. p. 314. Ver também Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 249.
21 NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 682.
22 Idem, p. 713.23 Idem, p. 714.
24 Cf. PHILONENKO, Alexis. Le rire et le tragique. Paris: Le Livre de Poche, 1995. p. 81: "reverter o platonismo e fazer do poeta o mestre da cidade."
25 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 82.
26 NIETZSCHE, Friedrich. Brief an meinen Freund... [19.10.1861] In: ______, Frühe Schriften 1854-1869. Edição em cinco volumes organizada por Hans J. Mette, Carl Koch e Karl Schlechta. München: C. H. Beck, 1994, vol. II. p. 2s.
27 Philonenko identifica estilos musicais com a prosa de Nietzsche (ver PHILONENKO, Alexis. Le rire et le tragique. op. cit., pp. 102; 232).
28 HÖLDERLIN, Friedrich. Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes. In: ______, Sämtliche Werke. Kleine Stuttgarter Ausgabe, Bd. 1-6. Herausgegeben von Friedrich Beissner. Stuttgart: Cotta, 1946-1962, vol. IV. p. 270.
29 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 967.
30 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1885-1887. In: ______, KSA. op. cit. vol. XII. p. 383. Ver também pp. 406; 417.
31 Idem, p. 389.
32 Idem, p. 390.
33 Cf. LEBRUN, Gérard. O Avesso da Dialética. S. Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 102.
34 Cf. BARTHES, Roland, A aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. S. Paulo: Cultrix, [ca. 1978]. p. 12s.
35 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1880-1881. In: ______, KSA. op. cit. vol. IX. p. 516.
36 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1884-1885. In: ______, KSA. op. cit. vol. XI. p. 536.
37 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 64.
38 NIETZSCHE, Friedrich. Die dionysische Weltanschauung III. In: ______, KSA. op. cit. vol. I. p. 569. É deste modo que, por exemplo, Lebrun interpreta a filosofia de Nietzsche (cf. LEBRUN, G. O Avesso da dialética, op. cit. p. 102s).
39 O desdobramento contínuo entre consonância e dissonância, sem a submissão desta última e sem qualquer resolução, mais precisamente, aquilo que Schönberg chamou de "emancipação da dissonância" (SCHÖNBERG, Arnold. Apollonian evaluation of a Dionysian epoch. In: ______, Structural Functions of Harmony. N. York: Norton, 1969. p. 193).
40 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 28.
41 Cf. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução de Carlos Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 18s.

Nietzsche e a Metafísica Musical

MORAES, Jorge. Nietzsche e a metafísica musical. In: Ítaca, 3: 2002, p. 161-171.



Nietzsche e a Metafísica Musical



Em 1872, como professor de Filologia Clássica na Universidade da Basiléia e sob a influência de Schopenhauer e de Richard Wagner, Nietzsche publica seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, expondo nele a seguinte tese: a tragédia grega, nascida a partir do coro de sátiros, desenvolve-se pela luta entre duas pulsões (Trieb) estéticas, a apolínea e a dionisíaca. A primeira diz respeito ao princípio de individuação, o qual determina as formas da aparência. É ela quem proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se sobretudo na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. A segunda, entretanto, diz respeito ao uno primordial, à destruição de toda individuação, a uma total embriaguez e desmedida, manifestando-se principalmente na melodia e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro de sátiros. Segundo sua tese, o emparelhamento (Paarung) dessas duas pulsões proporcionaria ao espectador da tragédia a possibilidade de entrar em contato com a força destruidora de Dioniso, sem que entretanto fosse destruído por ela, porque seria salvo pelo poder da bela aparência oferecido por Apolo. Por esta razão, explicar-se-ia finalmente o prazer estético produzido pelo horror encenado na tragédia grega.

Todavia, para Nietzsche, o caráter não racional da tragédia, proveniente da embriaguez dionisíaca, desagrada a um instinto que surge para os gregos: o instinto do conhecimento racional, encarnado, segundo ele, na figura de Sócrates. Por não ter afinidades com a encenação trágica de Ésquilo e Sófocles, tendo em vista que os acontecimentos representados por elas não são lógicos, Sócrates as critica, preferindo em lugar delas as encenações de Eurípides 1, justamente por serem inteligíveis. A tragédia, nascida da união entre Apolo e Dioniso, agora inicia seu ocaso. A aparência de Apolo e a embriaguez de Dioniso dão finalmente lugar ao desejo de conhecimento lógico e racional. Com o fortalecimento desta má compreensão da tragédia original, a música cada vez mais desaparece dos palcos, dando lugar ao que Nietzsche chama de "uma falsificada música mascarada". 2 Contudo, este ocaso não é de todo definitivo. Nietzsche não conclui esta sua obra sem antes afirmar que o renascimento da tragédia se faz presente, não mais através da música do coro de sátiros, mas pela música de Richard Wagner, uma promessa de futuro para a arte musical. 3


No mesmo ano em que escreveu sua primeira obra, Nietzsche mostrava-se atraído por uma concepção metafísica do mundo. Entretanto, esta concepção merece ser considerada no âmbito de uma nova perspectiva, tal como ele mesmo afirmava ao amigo Erwin Rohde: "Vejo em breve o indício [Stück] de uma nova metafísica; (vejo) em breve crescer uma nova estética". 4 No mesmo ano ele escreve para Carl von Gersdorff: "agarrei-me à mais séria convicção do valor metafísico da arte [den metaphysischen Wert der Kunst], a qual não pode existir por causa dos pobres seres humanos, mas deve cumprir missões mais altas". 5

Sempre relacionada às artes, esta nova metafísica proposta por Nietzsche - esta "metafísica de artista" 6 (como ele diria 15 anos depois) -, para ser realmente nova, deveria distanciar-se da velha metafísica das artes elaborada por Schopenhauer. Nietzsche, leitor de O Mundo como Vontade e Representação desde 1865, não poderia de modo algum ignorar a metafísica schopenhaueriana do belo - a qual ele mesmo cita por 3 vezes na seção 16 de seu Nascimento da Tragédia. Deste modo, somos levados a acreditar que Nietzsche introduz, conscientemente, correções significativas na metafísica de Schopenhauer, onde a relação entre música e vontade seria modificada. Para verificarmos estas correções, devemos antes retomar as palavras do próprio Schopenhauer sobre a metafísica das artes, tal como ele declara no terceiro livro de sua obra principal: "A relação de cópia com o modelo que ela (a música) tem com o mundo deve ser muito íntima [sehr innige], infinitamente verdadeira [unendlich wahre] e precisamente correta [richtig treffende], visto que todos a compreendem sem custo". 7

Está em jogo, portanto, a relação mimética entre mundo e música. Esta deverá ser, repetimos, "muito íntima, infinitamente verdadeira e precisamente correta". Mas são justamente esses atributos que são corrigidos por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia: "o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural [ein metaphysisches Supplement der Naturwirklichkeit ist], colocada junto dela a fim de superá-la. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração [metaphysischen Verklärungsabsicht] inerente à arte como tal". 8

A arte, para Nietzsche, não é portanto "apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural". Em outras palavras, a arte não meramente imita o mundo-vontade, mas adiciona algo a ele, um "suplemento metafísico" que finda por modificá-lo. Isto porque é inerente à metafísica do jovem Nietzsche um "intento (...) de transfiguração". Ou ainda, porque o "impulso metafísico procura criar para si uma forma (...) de transfiguração". 9

Esta transformação da natureza operada pela arte tem o objetivo de elevar, afirmar a vida; nas palavras de Nietzsche, trata-se de "uma nova ilusão transfiguradora para manter em vida o ânimo da individuação". 10 Nestes termos, parafraseando Aristóteles, Nietzsche bem poderia dizer: em geral, a arte imita a natureza, transfigurando-a. 11

Todavia, esta afirmação da vida através da arte tem, no jovem Nietzsche, ainda um caráter incipiente, no qual pode-se identificar a marca de Schopenhauer. Pois "manter em vida o ânimo da individuação" também pode soar como um consolo para os males do mundo. Por isso a metafísica de artista, elaborada por Nietzsche, corresponde enfim a um "consolo metafísico [metaphysische Trost], sem o qual não há como explicar de modo algum o prazer pela tragédia". 12 O problema é determinar se o consolo metafísico de Nietzsche corresponde ao consolo que Schopenhauer encontrou nas artes e enunciou da seguinte forma: "O gosto pelo belo, o consolo que a arte proporciona [der Trost, den die Kunst gewährt], o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida, esta única prerrogativa do gênio em relação aos outros, a compensá-lo pelo sofrimento também crescente na mesma medida da lucidez da consciência e pela solidão árida numa multidão heterogênea - tudo isso repousa em que veremos, a seguir, que o em si da vida, a vontade, a própria existência, é um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". 13

Essa visão pessimista de Schopenhauer, na qual a arte é tida como um consolo, só tem sentido porque a própria existência já é considerada como "um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". Nestes termos, ainda que a concepção metafísica de Schopenhauer tenha sido corrigida por Nietzsche, o consolo metafísico nietzschiano guarda ainda forte vestígio do pessimismo schopenhaueriano. Para Nietzsche, diante da realidade do mundo, as artes teriam uma função similar a que lhes atribuiu Schopenhauer. Mas não pelo paradoxo enunciado por ele: quanto maior a "lucidez da consciência", maior "o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida". Ao contrário, para o jovem professor, é pela ilusão e pelo sonho e não pela "lucidez da consciência" que se esquece as penas da vida. É graças ao análogo simbólico do sonho nas artes que "a vida torna-se possível e digna de ser vivida". 14 Segundo Nietzsche, esta foi uma descoberta da antigüidade heróica grega. "O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos". 15

Em favor do jovem Nietzsche cabe ressaltar, entretanto, que todo o consolo metafísico atribuído por ele às artes visa, sobretudo, à afirmação da vontade de viver e não à sua negação. Trata-se de um tônico necessário à ação e não de um anestésico paralisador. Assim, inverte-se a sabedoria de Sileno: "A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia". 16

*

Uma questão que permanece ainda em suspenso - diante da apropriação que o jovem Nietzsche fez da obra de Schopenhauer - é se o termo vontade em Nietzsche de fato corresponde conceitualmente à vontade schopenhaueriana. O próprio Nietzsche, em suas anotações da época, afirma claramente que não.

Desde seu contato com a obra de Friedrich A. Lange em 1866 - portanto, um ano depois de ler Schopenhauer -, Nietzsche inicia uma critica à metafísica do belo schopenhaueriana, em vários fragmentos, dos quais o que se segue é exemplar: "Mesmo toda a vida pulsional [Triebleben] (o jogo dos sentimentos, sensações, afetos e atos da vontade) nos é conhecida, pelo mais estrito auto-exame - como devo aqui intercalar contra Schopenhauer - apenas como representação [Vorstellung], e não segundo sua essência: e devemos ainda dizer que mesmo a ‘vontade’ de Schopenhauer é apenas a forma mais geral da aparência daquilo que permanece para nós (algo) totalmente indecifrável". 17

Embora Nietzsche não pareça disposto a transpor o mundo das representações em direção à coisa em si, ele admite que "podemos destinguir dois tipos principais no domínio das representações": as "sensações de prazer e desprazer [Lust- und Unlustempfindungen] que acompanham todas as outras representações como um infalível baixo-contínuo". Mas, em vez de dar um novo nome para estes dois tipos principais de representações, Nietzsche resolve "continuar a chamar de ‘vontade’ ... esta manifestação mais geral a qual", segundo ele, "é nossa única pista para todo devir e querer". 18

Desde 1868, Nietzsche já havia criticado o uso do termo vontade na obra de Schopenhauer: "A coisa em si toma aqui (na obra de Schopenhauer) uma de suas possíveis formas". 19 Naquele período, Nietzsche compreendia a coisa em si kantiana como sendo algo muito maior e irredutível ao termo escolhido por Schopenhauer; neste sentido, qualquer apreensão desta coisa em si, mesmo pela arte, seria uma limitação equivocada. Agora, três anos depois, ele parece ir apenas até onde a arte realmente pode chegar. E o limite que Nietzsche encontrou, o mais longínquo, foram as sensações de prazer e desprazer; para além deste ponto, o caminho seria completamente interditado. Entretanto, este já seria um grande avanço. Pois mesmo que as sensações básicas de prazer e desprazer não coincidam com a vontade schopenahueriana, elas permanecem ainda instâncias universais, visto que "acompanham todas as outras representações". Além disso, diferentemente da antiga vontade, esta nova instância "tem sua própria esfera simbólica na linguagem" 20; podendo, deste modo, ser comunicada simbolicamente. Neste sentido, Nietzsche esclarece: "Todos os graus de prazer e desprazer - exteriorizações de um fundo primevo [Urgrundes] não transparente - simbolizam-se no tom do falante [im Tone des Sprechenden] (...). À medida que este fundo primevo é o mesmo em todos os seres humanos, o fundo tonal é também geral e compreensível, apesar das diferenças entre as línguas". 21 Em termos resumidos: embora correspondam apenas a um aspecto do fundo primevo (da coisa em si), prazer e desprazer acompanham cada representação possível e podem ser expressos através do tom do falante. A linguagem falada, portanto, em suas variações de tonalidade, carrega consigo as sensações de prazer e desprazer que exprimem (ainda que parcialmente) o uno primordial. Este, entretanto, não é um privilégio da fala; "todas as outras representações", ou seja, tanto o gesto, quanto a imagem, cada uma ao seu modo, também são (ou podem ser) atravessadas pelas sensações de prazer e desprazer.


É apenas por este viés que Nietzsche poderá introduzir a música como expressão da coisa em si. Pois é através dela que a fala alcançará "uma expressão mais adequada" daquilo que Nietzsche continua chamando de "vontade" (ou sensações de prazer e desprazer). Por isso, ele afirma: "Esta manifestação primordial, a ‘vontade’, com sua escala de sensações de prazer e desprazer, consegue, porém, no desenvolvimento da música, uma expressão simbólica ainda mais adequada; cujo processo histórico é acompanhado [nebenher läuft] como o contínuo esforço do [poeta] lírico para transcrever a música em imagens". 22

Através dessas valiosas anotações, Nietzsche esclarece o que Schopenhauer considerava "impossível de provar" 23: a relação imediata entre música e vontade. De fato impossível, uma vez que o acesso à vontade era limitado. Mas também esclarece o poder que Wagner encontrou na música, a saber, a capacidade de penetrar em outras artes, tais como a pintura e a poesia, para assim resgatar-lhes a "força poética". 24 Isto seria possível apenas pelo contínuo esforço de "transcrever a música em imagens".

Vemos que dentro da metafísica nietzschiana da transfiguração, mesmo através da música, é vedado o acesso direto e total à vontade, à coisa em si schopenhaueriana. Em vez disso, impedida de levar qualquer sujeito do conhecimento até esse extremo, o que faz a música é expressar prazer e desprazer, de maneira bastante peculiar: "Agora deve a essência da natureza expressar-se simbolicamente [symbolisch ausdrücken]". 25 Sutil diferença e de grande valia: com ela percebemos que toda expressão também implica num movimento para fora (außer), num movimento de exteriorização. Exprimir ou expressar (ausdrücken) é, portanto, forçar algo para fora, pressionar (drücken) até que se manifeste, venha à luz. A arte dos tons (Tonkunst), uma arte da intensidade (tôu tónou), falando sempre através da "comovedora violência do som [erschütternde Gewalt des Tones]" 26, faz prazer e desprazer emergirem violentamente de si mesma, usando para isso o que lhe é próprio: a maestria da intensidade.

Notas:

1 Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d. p. 407: "Não é em vão que a tragédia parece ser sábia e que nela se distingue Eurípides" (568a). Tal como ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 252: para ele, "Eurípides, ainda que sua execução seja falha em cada um dos outros pontos, apesar disso, apresenta-se certamente como o mais trágico dos tragediógrafos" (1453a 28-30).
2 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie. In: ______. Werke in drei Bänden. München: Hanser, 1954. v. I, p. 64.
3 Nietzsche menciona, especificamente, Tristão e Isolda de Wagner.
4 NIETZSCHE, F. Briefe. In: ______. Op. cit. v. III, p. 1040. (Friedrich Nietzsche an Erwin Rohde, 29. März 1871).
5 Idem, p. 1042. (Friedrich Nietzsche an Carl von Gersdorff, 21. Juni 1871).
6 É de se notar que, precisamente este termo "Artisten-Metaphysik" nunca foi utilizado por Schopenhauer em sua obra principal, O Mundo como Vontade e Representação.
7 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In: Werke in zehn Bänden (Zürcher Ausgabe). Zürich: Diogenes, 1977. v. I, p. 322.
8 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 130.
9 Idem, p. 127.
10 Idem, p. 133.
11 Nas palavras de HANSLICK. Do Belo Musical. Tradução de Nicolino S. Neto. Campinas: Unicamp, 1992. p. 156: "A arte não deve imitar servilmente a natureza, deve transformá-la".
12 Idem, p. 97.
13 SCHOPENHAUER. Op. cit. p. 335.
14 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 23.
15 Idem, p. 30.
16 Idem, ibidem.
17 NIETZSCHE, F. Nachgelassene Fragmente. In: Kritische Studienausgabe. Berlim: de Gruyter, 1988. v. VII, p. 360-1, 12[1]. Este fragmento em especial detem grandes semelhanças com as teses do pessimista alemão Eduard von Hartmann, autor de Filosofia do Inconsciente, obra que Nietzsche conheceu e apreciou.
18 Idem, p. 361. Cf. também Idem, p. 202, 7 [165]: "Não há nada em nós, que ao uno primordial seja reconduzido. A vontade é a forma mais geral da aparência [die allgemeinste Erscheinungsform]: i.e. a alternância entre dor [Schmerz] e prazer [Lust]".
19 Cf. NIETZSCHE, F. Zu Schopenhauer. In: Frühe Studien. München: DTV, 1994. v. III, p. 352-361.
20 NIETZSCHE. Kritische Studienausgabe. Op. cit. v. VII, p. 361.
21 Idem, ibidem.
22 Idem, p. 362.
23 SCHOPENHAUER. Op. Cit. p. 323.
24 WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução de Theodomiro Tostes. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 89.
25 NIETZSCHE. Werke in drei Bänden. Op. cit. v. I, p. 28.
26 Idem, ibidem.