domingo, outubro 15, 2006

Heráclito entre Hegel e Nietzsche

MORAES. Jorge. HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE. In: MORPHEUS. Rio de JAneiro: UniRio, No. 06 - 2004.

ABSTRACT
In the present paper I intend to confront Hegel and Nietzsche's thought in the light of the so-called tragic Philosophy. I will evaluate specifically Hegel's prominence as a tragic philosopher. Firstly, I will characterize tragic philosophy in its relationship with a possible affirmation of being, in order to finally ascertain this relationship in Hegel and in Nietzsche. In this course, however, I will use Heraclit as a reference, in nietzschian as well as in Hegelian speech. Should I be successful, we will see that Hegel's philosophy, in spite of containing a valorization of time and transitivity, sees being in the teleological realm; parting, as such, from a tragic philosophy proclaimed by Nietzsche.

RESUMO
Nesse artigo pretendo confrontar o pensamento de Hegel e de Nietzsche à luz da chamada filosofia trágica. Trata-se especificamente de avaliar a proeminência de Hegel como filósofo trágico. Nesse sentido, visamos primeiramente caracterizar a filosofia trágica em sua relação com uma possível afirmação do devir, para finalmente apontar essa relação em Hegel e em Nietzsche. Nesse percurso, entretanto, tomaremos Heráclito como referência, tanto no discurso nietzschiano, quanto no hegeliano. Caso tenhamos sucesso, veremos que a filosofia de Hegel, apesar de conter uma valorização do tempo e da transitoriedade, acaba por determinar esse devir no âmbito da teleologia; distanciando-se assim da filosofia trágica proclamada por Nietzsche.


HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE


Em sua Introdução à Filosofia da História de Hegel, Jean Hyppolite afirma a proeminência do autor da Fenomenologia do Espírito com relação a uma visão trágica do mundo. Segundo ele:
o conceito de destino está carregado de sentido e parece escapar às análises da razão. É um conceito irracional, muito mais do que a idéia de positividade; é à visão trágica que Hegel vai buscar, uma visão trágica que com Hölderlin e antes de Nietzsche, apercebe o pano de fundo sombrio da serenidade helênica. 1

O problema que esta afirmação de Hyppolite traz à tona pode ser resumido numa única e breve questão: a filosofia dialética de Hegel seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche? A de se notar, entretanto, que o próprio Hyppolite, ao advogar a proeminência de Hegel com relação à visão trágica, faz menção ao autor de Zaratustra . E não poderia ser de outro modo, pois isso realmente se faz necessário ao menos por uma simples razão: nenhum outro filósofo antes de Nietzsche se autodenominou um filósofo trágico; e mais do que isso, nenhum outro filósofo, além de Nietzsche, se auto-proclamou o “primeiro filósofo trágico ” 2, ou o inventor do trágico, mesmo em detrimento aos filósofos gregos. Portanto, para desbancar Nietzsche, como deseja Hyppolite, nada mais justo do que se conhecer o conceito nietzschiano de trágico e verificar se ele é compatível com a filosofia hegeliana e então verificarmos se Hegel pode ter sido um precursor da filosofia trágica.

Todavia, embora Nietzsche se considere o primeiro filósofo trágico, é certo que ele não elimina a possibilidade de um antecessor. Neste sentido, ele postula o obscuro Heráclito como pensador que talvez tenha compreendido o trágico. 3 Justamente aí se destaca uma importante proximidade com Hegel, autor que também tanto prezava o filósofo de Éfeso. Diante dessa proximidade entre Hegel e Nietzsche, tentaremos através de Heráclito estabelecer um elemento distintivo entre que talvez possa caracterizar a chamada filosofia trágica. Numa palavra, tentaremos confrontar Hegel e Nietzsche através de Heráclito.

Desde de 1870 Nietzsche, como jovem professor de filologia, já esboçava suas teses sobre filosofia trágica. Naquela época, entretanto, eram elas restritas apenas aos alunos que acompanhavam seu curso na Universidade da Basiléia sobre os filósofos pré-platônicos, mais precisamente, nas aulas sobre Heráclito. Depois de uma explanação geral sobre a vida e o pensamento do filósofo de Éfeso, Nietzsche afirma:

"No fundo, ele é o contrário de um pessimista. Por outro lado, ele não é nada otimista: pois ele não nega o sofrimento e a desrazão: a guerra mostra-se para ele como o eterno processo do mundo (...); isto é genuinamente helênico. Há nele uma harmonía, mas uma [harmonia] baseada na discordância palíntropos [discordante] "4

Naquelas anotações dos cursos de 1870-71, o jovem professor ainda não havia dado um nome a esse pensamento (nem pessimista, nem otimista) de Heráclito. A harmonia “baseada na discordância [discordante]” ainda não possuía uma denominação. Mas fica bastante clara a intenção de apresentá-lo por oposição aos demais.

Um ano depois (ao publicar sua primeira obra), Nietzsche fala de Heráclito como o filósofo contemporâneo de um grande evento, o nascimento da tragédia. 5 Morta "em conseqüência de um conflito insolúvel, portanto tragicamente" 6, o renascimento da arte trágica se daria finalmente a partir da música alemã, a qual Nietzsche compara à filosofia heraclítica:

"que o mentiroso e o hipócrita tomem cuidado com a música alemã: pois justamente ela é, em meio a toda a nossa cultura, o único espírito de fogo limpo, puro e purificador, a partir do qual e para o qual, como na doutrina do grande Heráclito de Éfeso, se movem em dupla órbita circular todas as coisas: tudo o que chamamos agora de cultura, educação, civilização terá algum dia de comparecer perante o infalível juiz Dioniso." 7

O fogo de Heráclito, presente tanto nos acordes da música alemã como na tragédia grega arcaica, seria capaz de incendiar a cultura ocidental, reformulando-a a partir das cinzas. A música que Nietzsche considerava apolínea serviria então como instrumento de transformação nas mãos do “infalível juiz Dioniso”.

No entanto, esse movimento atribuído à doutrina de Heráclito não se resume a uma mera reformulação, cujo fim seria uma nova cultura pronta e acabada. Longe disso, com a “ajuda da relação musical da dissonância", Nietzsche descreve o "fenômeno dionisíaco que toma a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer”. 8 Como filósofo trágico, Nietzsche já comparava esse fenômeno à filosofia de Heráclito, para o qual o jogo de criação e de destruição do universo tem um caráter espontâneo, não visando qualquer fim - tal como “uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.” 9 Seguindo as prescrições do autor do Nascimento da Tragédia, essa nova cultura deveria estar também inserida num infinito movimento, nunca resolvido, nunca acabado, mas sempre em aberto, sempre dinâmico, tal como as dissonâncias não resolvidas de Tristão e Isolda, as quais (poucos anos antes) revolucionavam a concepção de harmonia da época na Europa e se tomavam a esperança de Nietzsche com relação ao futuro da música alemã.

Já em 1873 (portanto, um ano após a publicação de seu primeiro livro), Nietzsche produz um ensaio onde a figura do filósofo obscuro reaparece: A filosofia na época trágica dos gregos. Neste escrito, ele mostra o que há de comum entre Schopenhauer e Heráclito: para ambos a natureza existe somente por causa de uma luta constante, de um eterno conflito. Todavia, diferentemente de Heráclito, para Schopenhauer, essa luta “não passa de uma prova da auto-cisão da vontade de vida, uma autocorrosão deste instinto sombrio e confuso; é um fenômeno absolutamente horroroso, nada beatificante.”10 Nietzsche mostra como o pessimista de Frankfurt julga negativamente o conflito eterno, "o jogo de Zeus". 11 Entretanto, para o Heráclito nietzschiano, o conflito ganha um caráter positivo: não apenas tudo "acontece de acordo com essa luta", mas também “é essa luta que manifesta a justiça eterna.” 12 Deste modo, o conflito é visto como justo e a justiça é vista como existindo apenas no interior do conflito.

Nietzsche mostra assim como o jogo de Zeus ou o jogo da criança (presente tanto nos cursos de 1870-1, quanto no Nascimento da Tragédia e no ensaio de 1873) passa a ser "uma metáfora sublime" utilizada pelo filósofo de Éfeso. Ela designa o fogo eterno, "um devir e um declínio sem qualquer justificação moral". 13 Para Nietzsche, entretanto, por Heráclito não ser um homem artístico, “ele recorre à imagem do jogo da criança”, que Nietzsche encontra também nas artes: “Aqui reina a inocência, mas também a criação e a destruição”, 14 acrescenta o jovem professor. Para Heráclito, o jogo inocente e sem propósito é uma metáfora da natureza, 15 mas Nietzsche encontra na arte essa mesma metáfora. A arte inocente e sem propósito passa a figurar como um modelo para compreender o eterno e despropositado movimento de criação e destruição da natureza. Nesse sentido, o único propósito que poderia ser atribuído a esta arte, passa a ser a afirmação de seu próprio movimento, reflexo do prazer do artista em realizar sua arte, sem nenhum objetivo exterior a essa realização, a não ser sua própria participação no devir arte de sua obra.

É com Nietzsche e Heráclito, que encontramos no devir um elemento central na filosofia trágica. Mais do que isso, se evidencia um gosto especial pelo devir e suas conseqüências — o qual Nietzsche mais tarde denominaria amor fati. Todavia, ainda não seria por esse viés que lograríamos diferenciar Nietzsche de Hegel, tal como o próprio autor de Zaratustra destaca:

"Nós alemães, somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse existido um Hegel, na medida em que (ao contrário de todos os latinos) damos instintivamente ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, um valor mais profundo e mais rico do que aquilo que ‘é' - nós mal acreditamos que se justifique o conceito de 'ser' —" 16

Só esta afirmação de Nietzsche já justificaria a tese de Hyppolite. Além disso, o valor atribuído por Hegel à doutrina de Heráclito (a mesma que inspirou Nietzsche) nos leva mais uma vez a nossa questão: a filosofia dialética de Hegel não seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche?

Todavia, quando lemos o conteúdo dos cursos que Hegel escreveu sobre estética, mais precisamente no que se refere à arte trágica, tal proeminência poderia parecer estranha ou até mesmo inadequada. Lá a tragédia é vista à luz de um conflito entre forças que são, na verdade, particularizações de uma totalidade. Contrapostas, tais forças são igualmente corretas, mas também equivocadas. Nesse sentido, uma peça exemplar para Hegel seria Antígona. Do conflito que nasce entre elas não necessariamente deveria surgir constrangedora a exigência de uma resolução, ou de uma síntese, um fim. Mas essa exigência faz-se presente para Hegel e a sua dialética. Por isso, ao fim de toda luta, faz-se necessária a resolução, ou mais precisamente, uma espécie de reabsorção das forças particulares no interior do todo:

"Logo, tão legítimo é o fim e o caráter trágico como necessária é a solução desse conflito. Com efeito, assim se realiza a justiça eterna nos fins e nos indivíduos, restabelecendo-se a sua substância e unidade morais pela supressão da individualidade que perturbava o repouso." 17

Mesmo assim, esta reabsorção das forças particulares pela totalidade poderia ser vista como não sendo de todo apaziguadora. Mas não parece ser esse o caso. Hegel, tal como Nietzsche também utiliza o fenômeno musical da dissonância. Todavia, para se diferenciar do autor do Nascimento da Tragédia, afirmando “que a harmonia surja como resultado dela [da dissonância], por meio da solução do conflito”. 18 Está em jogo, portanto, uma concepção de harmonia própria do movimento romântico, notadamente, a inaugurada por Beethoven: consonância, dissonância e resolução. Análoga a ela, encontramos o modelo marxista de dialética atribuída a Hegel: tese, antítese e síntese - os três tempos do compasso hegeliano. Todavia, essa síntese bem poderia permanecer tensa, instável, dinâmica, tal como afirmam alguns dos grandes intérpretes de Hegel, a fim de valorizar seu pensamento:

"Os opostos são opostos entre si, mas eles não se opõem à unidade. Por certo, a unidade é nada mais que a união, ou síntese, dos opostos. Ela não é imobilidade, e sim movimento. Ela não é fixidez, mas desenvolvimento. (...) o concreto universal, com suas sínteses dos opostos, expressa a vida e não o cadáver da vida; ele fornece a fisiologia e não a anatomia do real." 19

Esta expressão da vida, como salienta Croce, se dá através do "movimento". Portanto, ao fim da dialética hegeliana, deveríamos ter não um mero ponto final, mas sim as oscilações que caracterizam a vida e suas vicissitudes. Pelo mesmo caminho, argumenta Francis Fukuyama, esclarecendo que o polêmico fim da história em Hegel não corresponderia a um fim dos conflitos ou eventos significativos para a humanidade, mas um fim do "processo evolutivo" das formas de governo ou de organização das "sociedades humanas". Conforme assinala Fukuyama:

"Isto [o fim da história em Hegel e Marx] não significava que o ciclo natural de nascimento, vida, e morte terminaria, que eventos importantes já não aconteceriam, ou que os jornais que os informam cessariam ser publicados. Significava, antes, que não haveria nenhum progresso adicional no desenvolvimento de princípios subjacentes e instituições, porque todas as perguntas realmente significativas já haviam sido resolvidos." 20

Mesmo assim, se as análises de Croce e de Fukuyama estiverem corretas (embora, segundo Lefebvre e Gérard Lebrun, isto seja um equivoco) 21, a estética da tragédia de Hegel e, como vimos, sua "supressão da individualidade que perturbava o repouso" acaba por comprometer uma possível filosofia trágica hegeliana. Se ela existe, de modo algum foi enunciada em seus cursos sobre a tragédia. Vemos assim, finalmente, o que está em jogo no conceito de trágico: a noção de fim, de conclusão, ou resolução. Se essa conclusão for sinônimo de repouso, ela jamais poderá ser trágica. Pois lhe faltaria o movimento próprio da vida.
Todavia, haverá quem também perceba nas reflexões nietzschianas sobre a tragédia um "cheiro indecorosamente hegeliano" 22 e, a partir daí, veja na relação entre ApoIo e Dioniso uma forma possível da dialética de Hegel - o que bem poderia ser justificado pela influência indireta de Feuerbach através da figura de Richard Wagner na obra de Nietzsche. Desse modo, nos perguntamos se talvez a filosofia trágica de Nietzsche não se faça presente em seu discurso sobre a tragédia?

Esta é, porém, uma hipótese pouco provável, por várias razões. A primeira delas encontra-se a poucas linhas da própria afirmação de suspeita de Nietzsche. (1) Como sua obra poderia ser dialética se "a verdadeira oposição" 23 apresentada por ela se dá entre Dioniso e Sócrates? Esta oposição tem como resultado a morte da tragédia e não qualquer tipo de síntese. (2) A relação entre ApoIo e Dioniso se mostra, em várias passagens, conflituosa e em várias outras, harmoniosa: "luta incessante e onde intervêm periódicas reconciliações" 24. Nunca estão absolutamente unidos, nem totalmente separados. Sua relação aparece sempre de forma dinâmica, ou energética, tal como na relação entre consonância e dissonância da harmonia inaugurada por Richard Wagner em Tristão e Isolda. A harmonia de sua união reside justamente na tensão produzida pelo encontro de ambas as pulsões: apolínea e dionisíaca - tal como se fossem os pólos de uma bateria. (3) A supremacia de Dioniso sobre Apolo, identificada por vários comentadores, também nos leva a conceber um tipo de relação não dialética, uma relação de outra ordem. Tudo se passa como se Apolo fosse a expressão de Dioniso. Deste modo, o deus Dioniso aparece no palco individualizado na figura apolínea do protagonista da tragédia. Afinal, quem é mais apolíneo do que Édipo, que quer estabelecer a ordem em Tebas e punir com sua ira todos os culpados? Todavia, essa individualização apolínea se dissolve no terrível fim do herói trágico. (4) A história dos contratempos que envolveram a publicação de O Nascimento da Tragédia mostra uma obra que foi concluída sob o signo de concessões, subtrações, acréscimos, mudanças de direção etc. Por tudo isso, podemos dizer que este é um texto difícil, pleno de contradições e imprecisões. Essas dificuldades, entretanto, têm levado vários interpretes à tentação de simplificar o que não é de modo algum simples, reduzindo este primeiro livro de Nietzsche a uma ou outra influência de juventude: Wagner, Schopenhauer etc. Por esta razão, é preciso se precaver e encarar esta obra com suas dificuldades e dar-lhe um sentido unificado apenas onde isso for possível. Deste modo, considerando justamente a miscelânea assistemática que forma O Nascimento da Tragédia, mesmo que de fato a filosofia trágica de Nietzsche ainda não se encontra ali pronta e acabada, cabe compreender que nessa obra complexa estão contidos (ainda que misturados e emaranhados) os elementos principais da filosofia trágica nietzschiana. 25

Quanto a nossa questão original, talvez encontremos a chave para a sua resposta justamente num visível ponto em comum entre Nietzsche e Hegel, o apreço para com a doutrina do obscuro Heráclito.

Em seu Curso sobre a História da Filosofia, o próprio Hegel afirma sem nenhuma reserva: "Não há uma sentença de Heráclito que eu não tenha acolhido em minha lógica." 26 Nesta lógica, porém, Hegel anuncia a prioridade do Ser: "O ser puro constitui (macht) o começo, porque ele é tanto pensamento puro, quanto incerto e simples imediato. Porém, o primeiro começo não pode ser nada de mediato e ainda determinado.” 27 Tudo isso faz com que o ser guarde também uma íntima relação com o nada: "Este ser puro agora é a pura abstração, para ser o negativo absoluto, o qual tomado do mesmo modo em sua imediatidade, é o nada.” 28 Como síntese, união desses conceitos opostos (e intimamente relacionados), surge o devir: "O nada, como este imediato, é similar a si mesmo, e inversamente o mesmo que o ser. A verdade do ser tal como a do nada, portanto, é a unidade de ambos; esta unidade é o devir.” 29 Esta mesma relação já aparecia na anterior Ciência da Lógica: o ser como um a priori do pensamento e, como tal, uma forma vazia, abstrata e, portanto, equivalendo a um nada. Por fim, a união concreta e materializada do ser e de seu oposto - ser e nada consumados no devir.

Nesta lógica, o fato de o ser se encontrar em primeiro lugar, de modo algum, postula para ele um valor mais elevado. O devir sim, como síntese das abstrações de um ser que equivale a um nada, passa a ser considerado como ponto mais elevado. O devir como síntese, como ponto final de uma trajetória lógica, representa um avanço considerável no pensamento ocidental. Situado em segundo plano desde Heráclito, o devir precisaria de um filósofo como Hegel para se tomar novamente o foco do pensamento ocidental.

Todavia, o movimento a que Hegel se refere (este devir como síntese) possui uma característica que o toma muito distante do movimento trágico da filosofia nietzschiana. Ele possui uma teleologia. Ele busca um fim, uma razão na história, uma realização concreta do Ideal em sua união com o Real. Essa teleologia percorre toda a obra de Hegel, da Fenomenologia do Espírito à Filosofia da História.

Em Nietzsche, entretanto, vemos o oposto. Como jovem estudante de filologia, ele já se colocava ao lado de Kant contra as teses teleológicas. E já parecia consciente da íntima relação entre tais teses e o otimismo vigente: "Otimismo e teleologia caminham de mãos dadas” 30, escrevia em 1867. Num sentido completamente oposto, em Hegel a história caminhava em direção à união entre o Ideal e o Real, onde o espírito deve conquistar a consciência de si se afastando da natureza, para assim alcançar o ápice de sua própria essência: a liberdade. Nas palavras de Hegel: "A liberdade encontrou a chave para realizar seu conceito como sua própria verdade. Esta é a meta da história mundial, e nós temos que percorrer o longo caminho que simplesmente é claramente estabelecido.”31

Em Nietzsche, principalmente quando ele interpreta Anaxágoras e Heráclito, esse conceito de liberdade (próprio do otimismo alemão) assume um outro caráter. Esta liberdade não é subordinada a uma meta histórica, como em Hegel. Para Nietzsche, "esse querer absolutamente livre só pode pensar-se como desligado de qualquer fim, à maneira de um jogo de crianças ou do jogo do instinto artístico.” 32 Liberdade, portanto, passa a estar intimamente relacionada a encontros fortuitos, ao acaso, ao jogo instintivo do artista.

Deste modo, compreendendo o pensamento trágico de Nietzsche, tal como ele mesmo o expressou, como tendo um possível precursor em Heráclito (i.e. em sua doutrina do jogo inocente e despropositado da criança), seria impossível identificar esse mesmo pensamento trágico na filosofia de Hegel: uma filosofia que dança somente em compassos ternários, cujos passos permanecem obedientes a um fim bem preciso e determinado. A adesão à vida, como princípio da filosofia trágica, não comporta um único compasso, tampouco a obediência a predeterminações. O passo da dança deve acompanhar a música da vida. Por isso, a filosofia trágica não pode ter um fim no duplo alcance do termo: (1) nem fim como conclusão, acabamento, resolução do movimento; (2) nem fim como meta, objetivo ou predeterminação do mover-se.

Neste sentido, se a filosofia de Hegel é uma filosofia do devir, como a de Nietzsche, ela não pode ser considerada trágica, porque esse devir percorre um caminho já previamente traçado e esquadrinhado. Embora o devir não seja expulso do pensamento, ele é aprisionado pela filosofia hegeliana em um projeto previamente elaborado.

Notas:

1 HYPPOLITE , Jean . Introdução à Filosofia da História de Hegel . Trad. José M. Lima. Lisboa: Elfos, 1995, p. 45.
2 NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, Kritische Studien Ausgabe. Berlim: Walter De Gruyter, 1988, vol. VI, p. 312 (doravante, KSA VI , p. 312).
3 Cf. NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, KSA VI , p. 312-3.
4 NIETZSCHE. Os filósofos pré-platônicos. ln : ______, Kritische Gesamtaugabe. Berlin: Walter De Gruyter, 1995, Tomo II, vol. 4, p. 282 (doravante, KGW II4 , p. 282).
5 Cf. NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 78.
6 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 75.
7 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 19. In: ______, KSA I , p. 127-8.
8 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
9 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
10 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §5 . In: ______, KSA I, p. 826.
11 Ibid., p. 374.
12 Ibid., p. 372.
13 NIETZSCHE. Die vorplatonischen Philosophen. In: ______, KGW II4 , p. 278.
14 Idem, Ibidem .
15 Cf. HERÁCLITO. Frag. 52. In: Diels-Vorsokr. Die Fragmente der Vorsokratiker 2 vol. 4a ed. Bilíngüe de DIELS, Herma nn. Berlin: Weidmannsche, 1922, vol. 1, p. 88: “O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.”
16 NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 357. In: ______, KSA III , p. 399.
17 HEGEL. Curso de Estética II. In: ______, Werke 20 vol. Frankfurt am Main: Suhrkamp,1970, vol. 15, p. 524 (doravante W 15 , p. 524).
18 HEGEL, Curso de Estética I . In: ______, W 13 , p. 268. Passagem traduzida por GONÇALVES, Márcia. O belo e o destino. São Paulo: Loyola, 2001, p. 290.
19 CROCE, Benedetto. "The Dialectic or Synthe sis of Opposites". In: ______, What is Living and What is Dead of the Philosophy of Hege!. Trad. Ainslie, Douglas. Lanham: University Press of América, 1985.
20 FUKUYAMA, Francis. By way of an introduction. In: ______, The end of History and the last man. New York: Avon Books, 1993, p. xii.
21 Ver LEFEBVRE, Lógica Forma/Lógica Dialética. Trad. Carlos Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 173 e LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética Hegel à luz de Nietzsche . Trad. Renato Janine Ribeiro São Paulo: Companhia das Letras , 1988, p. 101-2.
22 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 310 .
23 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 311.
24 NIETZSCHE . O Nascimento da Tragédia , § 1. In: ______, KSA I , p. 25.
25 Estes quatro pontos encontram-se desenvolvidos em minha dissertação de mestrado ______, O Pensamento Dissonante. Dissertação de Mestrado em Filosofia IFCS- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
26 HEGEL. Curso de história da Filosofia. In: ______, W XVIII , p. 320.
27 HEGEL. Plano para enciclopédia das ciências filosóficas. ln: ______, W VIII , p. 182-3.
28 Idem, Ibidem , p. 186.
29 Idem, Ibidem, p. 188.
30 NlETZSCHE, Zur Teleologie. ln: ______, Jugendschriften em 5 vol.. München: Beck. Vol. III, p. 371 (BAW III, p. 371).
31 HEGEL. Curso de Filosofia da História. In: ______, W XII , p.141.
32 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §19. ln: ______, KSA I , p. 872.

Nietzsche: a Filosofia Trágica a partir da Música

MORAES, Jorge. Nietzsche: a filosofia trágica a partir da música. In: Ítaca, 4: 2003, p. 122-130.

Nietzsche: a Filosofia Trágica a partir da Música

Friedrich Nietzsche, filólogo, filósofo, mas também poeta e compositor, dedicou boa parte de sua obra à investigação da arte musical. Escreveu para isso: O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, A Visão Dionisíaca do Mundo, Richard Wagner em Bayreuth, O Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner, além de uma série de fragmentos publicados postumamente. Vemos assim a importância que Nietzsche deu a esta modalidade artística — nas palavras de Karl Jaspers: "Nenhum outro filósofo foi tão completamente imbuído pela música ou a achou tão irresistível".1 O próprio Nietzsche, mesmo já distante de seus primeiros escritos, onde a música era um tema recorrente, afirma ao amigo Peter Gast: "A música agora me traz experiências como realmente nunca tive antes. Ela me torna sóbrio e me desprende de mim mesmo (...), e fazendo isso ela me fortalece. Cada tarde de música é seguida por uma manhã cheia de resolutos discernimentos e idéias. (...) A vida sem música é simplesmente um erro, um fastio, um exílio".2 Somente esta última afirmação (repetida também em uma de suas obras tardias) já nos dá uma amostra da importância que Nietzsche atribuiu à arte musical — "Sem música, a vida seria um erro".3
Entretanto, enquanto a música ganha uma importância vital no pensamento nietzschiano, nosso autor se apresenta também (em sua autobiografia) como sendo "o primeiro filósofo trágico"4, ou ainda (em suas anotações), como "o primeiro a descobrir o trágico".5 Verificamos, assim, que tanto o conceito de trágico quanto a arte musical assumem um papel central na filosofia de Nietzsche — muito embora mesmo os comentadores mais recentes não tenham ainda se debruçado sobre essa questão.

Georges Liébert, autor de Nietzsche et la Musique, mostra como, a partir da apologia nietzschiana à arte musical, pode-se chegar a duas interpretações distintas: (1) onde "a música faz esquecer a vida", tal como um narcótico que torne a existência algo de suportável; (2) onde "a vida só pode ser conhecida a partir da música", mas de um modo especial, onde "o prazer de existir culmina dentro da experiência musical".6 Ambos os sentidos, em momentos isolados, são possíveis em Nietzsche. Num primeiro momento, quando, influenciado por Arthur Schopenhauer, ele escreve O Nascimento da Tragédia (de 1872), obra na qual encontramos características significativas do "pessimismo romântico" — sobretudo no que Nietzsche chamou, na época, de "consolo metafísico". Num segundo momento, porém, 15 anos mais tarde, quando Nietzsche fala de um novo pessimismo, de um "pessimismo do futuro", um "pessimismo dionisíaco".7 Tal pessimismo é na verdade uma filosofia trágica, "uma compreensão e perspectiva trágica da vida".8 Nietzsche passa a se considerar então como "o primeiro filósofo trágico".9 Somos levados assim à inevitável questão: o que é ser um filósofo trágico? O que é esse tipo de filosofia? Que significa filosofia trágica em Nietzsche? A esta pergunta ele mesmo responde da seguinte forma: "(...) o conhecimento definitivo sobre o que é a psicologia da tragédia, eu o expressei ainda no Crepúsculo dos Ídolos. ‘O dizer Sim à vida, mesmo em seus problemas mais duros e estranhos; a vontade de vida, alegrando-se da própria inesgotabilidade no sacrifício de seus mais elevados tipos — a isto chamei dionisíaco, isto entendi como a ponte para a psicologia do poeta trágico (...)’".10
Todavia, esta resposta guarda consigo ainda um problema: seria preciso definir o que significa "dizer Sim à vida". Neste sentido, nosso objetivo é o de investigar esta questão através da reflexão nietzschiana sobre a música e assim aprofundar nossa compreensão a respeito do que Nietzsche chamou de filosofia trágica. Pretendemos, portanto, esclarecer a relação entre música e trágico na filosofia nietzscheana. Pois, se "o prazer de existir culmina dentro da experiência musical" (como destacou Liébert), a música deverá realmente assumir um papel preponderante dentro da filosofia nietzscheana, isto é, dentro desta filosofia que quer "dizer Sim à vida".

Em sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, nosso filósofo nos apresenta uma concepção metafísica da música. Próximo do pensamento de Arthur Schopenhauer, Nietzsche afirma: "Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade".11 A música é vista, portanto, como um instrumento privilegiado do conhecimento, mas num sentido muito especial, que é o de alcançar aquilo que Schopenhauer chamou de vontade interna do mundo, a coisa em si kantiana. Se com Kant este acesso era vedado à razão, todo o romantismo alemão (e não apenas Schopenhauer) encontraria um caminho alternativo para a coisa em si através das artes.
Todavia, já naquele momento (enquanto preparava seu primeiro livro), uma outra perspectiva se anunciava. Nos rascunhos de O Nascimento da Tragédia, Nietzsche escreve: "A música pode gerar pensamentos? De início imagens, disposições, depois pensamentos".12 Numa carta da mesma época (1871) ele afirma drasticamente: "Tudo o que não se pode compreender por meio de relações musicais produz em mim realmente nojo e repugnância".13 E também, numa das passagens de sua primeira obra publicada: "...hei de me dirigir tão-só àqueles que, diretamente aparentados com a música, têm nela ao mesmo tempo o seu colo materno e se vinculam às coisas quase unicamente através de relações musicais inconscientes".14 — Além de uma apologia da arte musical, o que há de comum entre essas três passagens é que nenhuma delas tem a ver, necessariamente, com a vontade interna do mundo schopenhaueriana (ou com a coisa em si kantiana). As três passagens apontam ou para a produção de pensamentos através da música, ou para um modo musical de ver o mundo. Nos dois casos, para uma visão de mundo musical, isto é, para uma filosofia musical, não necessariamente metafísica.15
Nossa primeira hipótese é que essa visão de mundo musical, ainda incipiente na juventude, se confirmaria nos escritos de maturidade, sobretudo a partir da Gaia Ciência, obra na qual Nietzsche enuncia em poucas palavras: música é vida. "‘Cera nos ouvidos’ foi então quase [uma] condição para filosofar; um autêntico filósofo já não ouvia a vida, à medida que música é vida, ele negava a música da vida — esta é uma antiga superstição de filósofo, que toda música é música de sereias".16
Identificando Nietzsche a arte musical com aquilo que chamou de vida (devir, existência) — tema fundamental em sua filosofia de maturidade —, a música estaria apta a tornar-se filosofia. Como vida, seria ela que, em vez de ser avaliada pelo pensamento teórico,17 passaria então a avaliar toda teoria. Por esta razão Nietzsche pode afirmar: "Juízos, juízos de valor sobre a vida, nunca podem, em definitivo, ser verdadeiros: só têm valor como sintoma (...). É preciso estender os dedos, completamente, nesta direção e tentar captar essa assombrosa finesse — de que o valor da vida não pode ser avaliado. Por um vivente não, porque este é parte interessada, e até mesmo objeto de litígio, e não juiz; por um morto não, por uma outra razão".18
A partir da música ou, mais precisamente, a partir das "relações musicais inconscientes", Nietzsche seria capaz de avaliar as mesmas instâncias que outrora foram utilizadas pela filosofia para avaliar a música. Por exemplo, o cálculo matemático (notadamente utilizado por Sto. Agostinho, Descartes e Leibinz, a fim de explicar o fenômeno musical).19 Contrário a essa visão matematizante, afirma Nietzsche: "A calculabilidade do mundo, a expressibilidade de todos acontecimentos em fórmulas — é isto realmente uma ‘compreensão’? Quão bem compreendida seria uma música, se tudo que nela pudesse vir a ser calculável e reduzido a fórmulas fosse calculado?".20 Mas também, contra a moral, ele afirma: "É a música de nossa consciência, a dança de nosso espírito, com que não podem afinar as litanias puritanas, as prédicas morais e o filistinismo".21 E mesmo contra uma concepção lógico-funcional da linguagem: "— Que martírio são os livros escritos em alemão para aquele que possui o terceiro ouvido! Como se detém contrariado junto ao lento envolver desse pântano de sons sem harmonia, de ritmos que não dançam, que entre os alemães é chamado de ‘livro’!"22 Ou ainda, "que o estilo alemão tem pouco a ver com o som e os ouvidos é demonstrado pelo fato de que justamente nossos bons músicos escrevem mal. O alemão não lê em voz alta, não lê para os ouvidos, mas apenas com os olhos: ao fazê-lo, põe os ouvidos na gaveta".23
Deste modo, Nietzsche, em sua maturidade, alcançaria o ponto máximo da inversão do platonismo:24 em lugar do rei filósofo determinar que música é de fato adequada à Pólis, seria a vez de a música avaliar que teoria é de fato adequada à vida. A filosofia de Nietzsche se definiria, portanto, através de um emblemático imperativo categórico: — "Sócrates, faça música!".25
Todavia resta-nos tentar responder a uma importante questão: se o pensamento nietzscheano se estrutura como música, que tipo de pensamento seria esse? Como se estruturariam as "relações musicais inconscientes" a que Nietzsche se referiu? Que música soaria através deste modo de pensar? Nossa segunda e principal hipótese é que esse pensamento musical guarda a mesma estrutura da filosofia trágica.
A própria escrita de Nietzsche pode ser considerada musical. O seu uso da pontuação produz um ritmo e cadência dignos de um sofisticado compositor; além disso, com o domínio de uma fonologia expressiva, ele delineia as palavras de forma extremamente melódica. Deste modo, ao escrever, Nietzsche produz uma prosa musical. Prosa que já havia encontrado em Hölderlin, seu "poeta favorito" na tenra juventude: "De fato, esta prosa é música, fusão de sons brandos, interrompidos por dissonâncias dolorosas".26 É este elogio a Hölderlin que nos dá indicações não somente sobre o estilo de escrita de Nietzsche, mas também sobre o estilo de sua filosofia.27 A "fusão de sons brandos, interrompidos por dissonâncias dolorosas" nos remete à união dos opostos — musicalmente, nos remete à união entre consonância e dissonância, que em Hölderlin se expressa pelo "divino" ou o "harmonicamente oposto como a unidade contida dentro de si mesmo".28 Esta união dos opostos, em Nietzsche, surge mais tarde, sob a luz de um elogio: "Apenas às custas de ser rico em contradições se é fértil".29
Todavia, para ele, a própria contradição é ilusória: "Não há opostos: apenas a partir da lógica nós temos o conceito de opostos — e falsamente o transferimos para as coisas".30 Por esta razão, Nietzsche então se pergunta: "os axiomas lógicos são adequados ao real [Wirklichen], ou são antes padrões e meios para criarmos para nós o conceito de "realidade" [Wirklichkeit] em torno do real [Wirkliches]?..."31 Para ele, a resposta é negativa: "Enquanto não compreendemos isto e criamos a partir da lógica um critério para o verdadeiro ser, estamos já a caminho de estabelecer como realidades todas aquelas hipóstases: substância, predicado, objeto, sujeito, ação etc.; isto é, de conceber um mundo metafísico, isto é, um "mundo verdadeiro" ( — este é porém, mais uma vez, um mundo aparente)".32 Com isso, nosso autor mostra que a lógica, a partir de sua condição de mera convenção, se estabelece como realidade. Assim, uma configuração gramatical que visa a organizar o real acaba por cristalizá-lo em oposições. Um esquecimento do caráter arbitrário de tal gramática finda por assumir como necessárias tais oposições — elas devem ser de um determinado modo e de forma alguma poderiam ser diferentes.
Por fim, a união dos opostos, em Nietzsche, não é o que poderíamos chamar de um processo a posteriori — tal como uma oposição que resultasse numa síntese.33 O que há desde sempre é uma turbulenta relação de forças (mesmo no campo da linguagem34), onde cada força somente existe interligada a outras e apenas poderia ser separada ou isolada por abstração. Nesta tensa relação, de modo algum se alcançaria um equilíbrio definitivo. Para Nietzsche, nenhuma organização seria de fato definitiva; pois isto seria totalmente avesso ao próprio movimento contínuo de criação e destruição o qual Nietzsche chamou de vida. Neste sentido, ele afirma: "Não se produz na natureza um equilíbrio ‘lábio’, assim como não há dois triângulos congruentes. Por conseguinte, nem mesmo [há] um estado de repouso da força em geral. Se o estado de repouso fosse possível, ele teria intervindo!".35 Numa outra passagem: "Que um estado de equilíbrio não seja nunca alcançado é prova de que ele não é possível".36
Neste sentido, identificamos essa falta de equilíbrio sólido e definitivo como estando presente, tanto no movimento musical que Nietzsche tematizou, quanto no conceito de trágico que marcou sua filosofia. Por isso Nietzsche já identificava (desde 1870-72) o trágico a "um conflito insolúvel"37; ou ainda, a "enigmas verdadeiramente insolúveis da existência humana".38

Vemos, portanto, (1) que a precoce visão de mundo de Nietzsche fundada em "relações musicais inconscientes" se confirmaria e se solidificaria nos escritos de maturidade a partir da premissa nietzschiana "música é vida" e (2) que esse pensamento musical guardaria a mesma estrutura da filosofia trágica, seguindo um modelo instável, contraditório e inacabado.
Procuramos assim evidenciar uma relação musical39 na filosofia nietzschiana, que não se pauta, nem pela mera oposição de elementos isolados, nem pela resolução (ou síntese) dessa oposição. Neste sentido, entendemos que a filosofia trágica poderia finalmente "dizer Sim à vida", isto é, poderia operar no campo das contradições contínuas e não resolvidas. Para isso, contaria com o movimento próprio da arte dos tons (Tonkunst), uma arte da intensidade (toû tónou). — Falando sempre através da "comovedora violência do som"40, a música transformaria em arte o conflito insolúvel que Nietzsche chamou de vida (devir, existência) e, mais do que isso, com uma nova lógica musical41, seria possível introduzir finalmente este mesmo conflito insolúvel na investigação filosófica, dando-lhe movimento. Neste sentido, poderemos compreender, através da arte musical, aquilo que Nietzsche chamou de filosofia trágica: uma filosofia não idealista que procura aderir à vida, isto é, ao contínuo e não resolvido movimento de criação e destruição, cuja analogia mais próxima Nietzsche encontrou na música.

Notas:

1 JASPERS, Karl. Nietzsche. Tradução de Charles Wallraff e Frederick Schmitz. London: John Hopkins, 1997. pp. 32-33.
2 Carta a Peter Gast de 15 de janeiro de 1888. apud. JASPERS, Karl. Nietzsche. op. cit. p. 32.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. Edição organizada por Karl Schlechta. München: Hanser, 1954, vol. II. p. 947.
4 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1110.
5 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1884-1885. In: ______, Kritische Studienausgabe (KSA), Edição crítica em 15 volumes organizada por G. Colli e M. Montinari. Berlin: Walter de Gruyter, 1988, vol. XI. p. 32.
6 LIÉBERT, Georges. Nietzsche et la musique. Paris: PUF, 1995. p. 107
7 NIETZSCHE, Friedrich. Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 246.
8 NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche contra Wagner. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1047.
9 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 1110.
10 Idem, ibidem.
11 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 91.
12 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1869-1874. In: KSA. op. cit., vol. VII. p. 320.
13 NIETZSCHE, Friedrich. Carta a Erwin Rohde de 21 de dezembro de 1871. In: ______, Briefe Band 3: der Basler Zeit,1869-1873. Organizado por Wilheime Hoppe. Munique: C.H. Beck, 1940. p. 178.
14 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 116.
15 Através de uma outra perspectiva, Heidegger afirma que Nietzsche seria "o último Metafísico do ocidente" (HEIDEGGER, Martin. Nietzsche, IV vol. Tradução de David Farrell Krell. San Francisco: Harper & Row, 1987, vol. III. p. 8). De qualquer modo, ainda que Nietzsche permaneça um filósofo metafísico, há de se compreender que existem grandes mudanças entre a nova metafísica de Nietzsche e aquela de Schopenhauer, voltada para o puro conhecimento da coisa em si através da música. Procurei explicitar essa distância entre Nietzsche e Schopenhauer em MORAES, Jorge. Nietzsche e a metafísica musical. In: Ítaca, n° 3, Rio de Janeiro, 2002. pp. 164-171.
16 NIETZSCHE, Friedrich. Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 247.
17 O que ocorreu ao longo da história da filosofia, de Platão a Kant, como procurei demonstrar em meu artigo MORAES, Jorge. Para uma filosofia da música: Nietzsche, Schopenhauer, Wagner e a estética musical. In: Ítaca, n° 2. Rio de Janeiro, 2001. pp. 142-156.
18 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II, p. 952.
19 Já desenvolvemos essa questão em MORAES, Jorge. Para uma filosofia da música: Nietzsche, Schopenhauer, Wagner e a estética musical. In: Ítaca, n° 2. op. cit.. pp. 142-156.
20 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1885-1887, In: ______, KSA. op. cit., vol. XII. p. 314. Ver também Die fröhliche Wissenschaft. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 249.
21 NIETZSCHE, F. Jenseits von Gut und Böse. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 682.
22 Idem, p. 713.23 Idem, p. 714.
24 Cf. PHILONENKO, Alexis. Le rire et le tragique. Paris: Le Livre de Poche, 1995. p. 81: "reverter o platonismo e fazer do poeta o mestre da cidade."
25 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 82.
26 NIETZSCHE, Friedrich. Brief an meinen Freund... [19.10.1861] In: ______, Frühe Schriften 1854-1869. Edição em cinco volumes organizada por Hans J. Mette, Carl Koch e Karl Schlechta. München: C. H. Beck, 1994, vol. II. p. 2s.
27 Philonenko identifica estilos musicais com a prosa de Nietzsche (ver PHILONENKO, Alexis. Le rire et le tragique. op. cit., pp. 102; 232).
28 HÖLDERLIN, Friedrich. Über die Verfahrungsweise des poetischen Geistes. In: ______, Sämtliche Werke. Kleine Stuttgarter Ausgabe, Bd. 1-6. Herausgegeben von Friedrich Beissner. Stuttgart: Cotta, 1946-1962, vol. IV. p. 270.
29 NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. II. p. 967.
30 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1885-1887. In: ______, KSA. op. cit. vol. XII. p. 383. Ver também pp. 406; 417.
31 Idem, p. 389.
32 Idem, p. 390.
33 Cf. LEBRUN, Gérard. O Avesso da Dialética. S. Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 102.
34 Cf. BARTHES, Roland, A aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. S. Paulo: Cultrix, [ca. 1978]. p. 12s.
35 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1880-1881. In: ______, KSA. op. cit. vol. IX. p. 516.
36 NIETZSCHE, Friedrich. Nachlaß 1884-1885. In: ______, KSA. op. cit. vol. XI. p. 536.
37 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 64.
38 NIETZSCHE, Friedrich. Die dionysische Weltanschauung III. In: ______, KSA. op. cit. vol. I. p. 569. É deste modo que, por exemplo, Lebrun interpreta a filosofia de Nietzsche (cf. LEBRUN, G. O Avesso da dialética, op. cit. p. 102s).
39 O desdobramento contínuo entre consonância e dissonância, sem a submissão desta última e sem qualquer resolução, mais precisamente, aquilo que Schönberg chamou de "emancipação da dissonância" (SCHÖNBERG, Arnold. Apollonian evaluation of a Dionysian epoch. In: ______, Structural Functions of Harmony. N. York: Norton, 1969. p. 193).
40 NIETZSCHE, Friedrich. Die Geburt der Tragödie. In: ______, Werke in drei Bänden. op. cit., vol. I. p. 28.
41 Cf. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Tradução de Carlos Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. p. 18s.

Nietzsche e a Metafísica Musical

MORAES, Jorge. Nietzsche e a metafísica musical. In: Ítaca, 3: 2002, p. 161-171.



Nietzsche e a Metafísica Musical



Em 1872, como professor de Filologia Clássica na Universidade da Basiléia e sob a influência de Schopenhauer e de Richard Wagner, Nietzsche publica seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, expondo nele a seguinte tese: a tragédia grega, nascida a partir do coro de sátiros, desenvolve-se pela luta entre duas pulsões (Trieb) estéticas, a apolínea e a dionisíaca. A primeira diz respeito ao princípio de individuação, o qual determina as formas da aparência. É ela quem proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se sobretudo na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. A segunda, entretanto, diz respeito ao uno primordial, à destruição de toda individuação, a uma total embriaguez e desmedida, manifestando-se principalmente na melodia e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro de sátiros. Segundo sua tese, o emparelhamento (Paarung) dessas duas pulsões proporcionaria ao espectador da tragédia a possibilidade de entrar em contato com a força destruidora de Dioniso, sem que entretanto fosse destruído por ela, porque seria salvo pelo poder da bela aparência oferecido por Apolo. Por esta razão, explicar-se-ia finalmente o prazer estético produzido pelo horror encenado na tragédia grega.

Todavia, para Nietzsche, o caráter não racional da tragédia, proveniente da embriaguez dionisíaca, desagrada a um instinto que surge para os gregos: o instinto do conhecimento racional, encarnado, segundo ele, na figura de Sócrates. Por não ter afinidades com a encenação trágica de Ésquilo e Sófocles, tendo em vista que os acontecimentos representados por elas não são lógicos, Sócrates as critica, preferindo em lugar delas as encenações de Eurípides 1, justamente por serem inteligíveis. A tragédia, nascida da união entre Apolo e Dioniso, agora inicia seu ocaso. A aparência de Apolo e a embriaguez de Dioniso dão finalmente lugar ao desejo de conhecimento lógico e racional. Com o fortalecimento desta má compreensão da tragédia original, a música cada vez mais desaparece dos palcos, dando lugar ao que Nietzsche chama de "uma falsificada música mascarada". 2 Contudo, este ocaso não é de todo definitivo. Nietzsche não conclui esta sua obra sem antes afirmar que o renascimento da tragédia se faz presente, não mais através da música do coro de sátiros, mas pela música de Richard Wagner, uma promessa de futuro para a arte musical. 3


No mesmo ano em que escreveu sua primeira obra, Nietzsche mostrava-se atraído por uma concepção metafísica do mundo. Entretanto, esta concepção merece ser considerada no âmbito de uma nova perspectiva, tal como ele mesmo afirmava ao amigo Erwin Rohde: "Vejo em breve o indício [Stück] de uma nova metafísica; (vejo) em breve crescer uma nova estética". 4 No mesmo ano ele escreve para Carl von Gersdorff: "agarrei-me à mais séria convicção do valor metafísico da arte [den metaphysischen Wert der Kunst], a qual não pode existir por causa dos pobres seres humanos, mas deve cumprir missões mais altas". 5

Sempre relacionada às artes, esta nova metafísica proposta por Nietzsche - esta "metafísica de artista" 6 (como ele diria 15 anos depois) -, para ser realmente nova, deveria distanciar-se da velha metafísica das artes elaborada por Schopenhauer. Nietzsche, leitor de O Mundo como Vontade e Representação desde 1865, não poderia de modo algum ignorar a metafísica schopenhaueriana do belo - a qual ele mesmo cita por 3 vezes na seção 16 de seu Nascimento da Tragédia. Deste modo, somos levados a acreditar que Nietzsche introduz, conscientemente, correções significativas na metafísica de Schopenhauer, onde a relação entre música e vontade seria modificada. Para verificarmos estas correções, devemos antes retomar as palavras do próprio Schopenhauer sobre a metafísica das artes, tal como ele declara no terceiro livro de sua obra principal: "A relação de cópia com o modelo que ela (a música) tem com o mundo deve ser muito íntima [sehr innige], infinitamente verdadeira [unendlich wahre] e precisamente correta [richtig treffende], visto que todos a compreendem sem custo". 7

Está em jogo, portanto, a relação mimética entre mundo e música. Esta deverá ser, repetimos, "muito íntima, infinitamente verdadeira e precisamente correta". Mas são justamente esses atributos que são corrigidos por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia: "o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural [ein metaphysisches Supplement der Naturwirklichkeit ist], colocada junto dela a fim de superá-la. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração [metaphysischen Verklärungsabsicht] inerente à arte como tal". 8

A arte, para Nietzsche, não é portanto "apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural". Em outras palavras, a arte não meramente imita o mundo-vontade, mas adiciona algo a ele, um "suplemento metafísico" que finda por modificá-lo. Isto porque é inerente à metafísica do jovem Nietzsche um "intento (...) de transfiguração". Ou ainda, porque o "impulso metafísico procura criar para si uma forma (...) de transfiguração". 9

Esta transformação da natureza operada pela arte tem o objetivo de elevar, afirmar a vida; nas palavras de Nietzsche, trata-se de "uma nova ilusão transfiguradora para manter em vida o ânimo da individuação". 10 Nestes termos, parafraseando Aristóteles, Nietzsche bem poderia dizer: em geral, a arte imita a natureza, transfigurando-a. 11

Todavia, esta afirmação da vida através da arte tem, no jovem Nietzsche, ainda um caráter incipiente, no qual pode-se identificar a marca de Schopenhauer. Pois "manter em vida o ânimo da individuação" também pode soar como um consolo para os males do mundo. Por isso a metafísica de artista, elaborada por Nietzsche, corresponde enfim a um "consolo metafísico [metaphysische Trost], sem o qual não há como explicar de modo algum o prazer pela tragédia". 12 O problema é determinar se o consolo metafísico de Nietzsche corresponde ao consolo que Schopenhauer encontrou nas artes e enunciou da seguinte forma: "O gosto pelo belo, o consolo que a arte proporciona [der Trost, den die Kunst gewährt], o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida, esta única prerrogativa do gênio em relação aos outros, a compensá-lo pelo sofrimento também crescente na mesma medida da lucidez da consciência e pela solidão árida numa multidão heterogênea - tudo isso repousa em que veremos, a seguir, que o em si da vida, a vontade, a própria existência, é um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". 13

Essa visão pessimista de Schopenhauer, na qual a arte é tida como um consolo, só tem sentido porque a própria existência já é considerada como "um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". Nestes termos, ainda que a concepção metafísica de Schopenhauer tenha sido corrigida por Nietzsche, o consolo metafísico nietzschiano guarda ainda forte vestígio do pessimismo schopenhaueriano. Para Nietzsche, diante da realidade do mundo, as artes teriam uma função similar a que lhes atribuiu Schopenhauer. Mas não pelo paradoxo enunciado por ele: quanto maior a "lucidez da consciência", maior "o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida". Ao contrário, para o jovem professor, é pela ilusão e pelo sonho e não pela "lucidez da consciência" que se esquece as penas da vida. É graças ao análogo simbólico do sonho nas artes que "a vida torna-se possível e digna de ser vivida". 14 Segundo Nietzsche, esta foi uma descoberta da antigüidade heróica grega. "O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos". 15

Em favor do jovem Nietzsche cabe ressaltar, entretanto, que todo o consolo metafísico atribuído por ele às artes visa, sobretudo, à afirmação da vontade de viver e não à sua negação. Trata-se de um tônico necessário à ação e não de um anestésico paralisador. Assim, inverte-se a sabedoria de Sileno: "A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia". 16

*

Uma questão que permanece ainda em suspenso - diante da apropriação que o jovem Nietzsche fez da obra de Schopenhauer - é se o termo vontade em Nietzsche de fato corresponde conceitualmente à vontade schopenhaueriana. O próprio Nietzsche, em suas anotações da época, afirma claramente que não.

Desde seu contato com a obra de Friedrich A. Lange em 1866 - portanto, um ano depois de ler Schopenhauer -, Nietzsche inicia uma critica à metafísica do belo schopenhaueriana, em vários fragmentos, dos quais o que se segue é exemplar: "Mesmo toda a vida pulsional [Triebleben] (o jogo dos sentimentos, sensações, afetos e atos da vontade) nos é conhecida, pelo mais estrito auto-exame - como devo aqui intercalar contra Schopenhauer - apenas como representação [Vorstellung], e não segundo sua essência: e devemos ainda dizer que mesmo a ‘vontade’ de Schopenhauer é apenas a forma mais geral da aparência daquilo que permanece para nós (algo) totalmente indecifrável". 17

Embora Nietzsche não pareça disposto a transpor o mundo das representações em direção à coisa em si, ele admite que "podemos destinguir dois tipos principais no domínio das representações": as "sensações de prazer e desprazer [Lust- und Unlustempfindungen] que acompanham todas as outras representações como um infalível baixo-contínuo". Mas, em vez de dar um novo nome para estes dois tipos principais de representações, Nietzsche resolve "continuar a chamar de ‘vontade’ ... esta manifestação mais geral a qual", segundo ele, "é nossa única pista para todo devir e querer". 18

Desde 1868, Nietzsche já havia criticado o uso do termo vontade na obra de Schopenhauer: "A coisa em si toma aqui (na obra de Schopenhauer) uma de suas possíveis formas". 19 Naquele período, Nietzsche compreendia a coisa em si kantiana como sendo algo muito maior e irredutível ao termo escolhido por Schopenhauer; neste sentido, qualquer apreensão desta coisa em si, mesmo pela arte, seria uma limitação equivocada. Agora, três anos depois, ele parece ir apenas até onde a arte realmente pode chegar. E o limite que Nietzsche encontrou, o mais longínquo, foram as sensações de prazer e desprazer; para além deste ponto, o caminho seria completamente interditado. Entretanto, este já seria um grande avanço. Pois mesmo que as sensações básicas de prazer e desprazer não coincidam com a vontade schopenahueriana, elas permanecem ainda instâncias universais, visto que "acompanham todas as outras representações". Além disso, diferentemente da antiga vontade, esta nova instância "tem sua própria esfera simbólica na linguagem" 20; podendo, deste modo, ser comunicada simbolicamente. Neste sentido, Nietzsche esclarece: "Todos os graus de prazer e desprazer - exteriorizações de um fundo primevo [Urgrundes] não transparente - simbolizam-se no tom do falante [im Tone des Sprechenden] (...). À medida que este fundo primevo é o mesmo em todos os seres humanos, o fundo tonal é também geral e compreensível, apesar das diferenças entre as línguas". 21 Em termos resumidos: embora correspondam apenas a um aspecto do fundo primevo (da coisa em si), prazer e desprazer acompanham cada representação possível e podem ser expressos através do tom do falante. A linguagem falada, portanto, em suas variações de tonalidade, carrega consigo as sensações de prazer e desprazer que exprimem (ainda que parcialmente) o uno primordial. Este, entretanto, não é um privilégio da fala; "todas as outras representações", ou seja, tanto o gesto, quanto a imagem, cada uma ao seu modo, também são (ou podem ser) atravessadas pelas sensações de prazer e desprazer.


É apenas por este viés que Nietzsche poderá introduzir a música como expressão da coisa em si. Pois é através dela que a fala alcançará "uma expressão mais adequada" daquilo que Nietzsche continua chamando de "vontade" (ou sensações de prazer e desprazer). Por isso, ele afirma: "Esta manifestação primordial, a ‘vontade’, com sua escala de sensações de prazer e desprazer, consegue, porém, no desenvolvimento da música, uma expressão simbólica ainda mais adequada; cujo processo histórico é acompanhado [nebenher läuft] como o contínuo esforço do [poeta] lírico para transcrever a música em imagens". 22

Através dessas valiosas anotações, Nietzsche esclarece o que Schopenhauer considerava "impossível de provar" 23: a relação imediata entre música e vontade. De fato impossível, uma vez que o acesso à vontade era limitado. Mas também esclarece o poder que Wagner encontrou na música, a saber, a capacidade de penetrar em outras artes, tais como a pintura e a poesia, para assim resgatar-lhes a "força poética". 24 Isto seria possível apenas pelo contínuo esforço de "transcrever a música em imagens".

Vemos que dentro da metafísica nietzschiana da transfiguração, mesmo através da música, é vedado o acesso direto e total à vontade, à coisa em si schopenhaueriana. Em vez disso, impedida de levar qualquer sujeito do conhecimento até esse extremo, o que faz a música é expressar prazer e desprazer, de maneira bastante peculiar: "Agora deve a essência da natureza expressar-se simbolicamente [symbolisch ausdrücken]". 25 Sutil diferença e de grande valia: com ela percebemos que toda expressão também implica num movimento para fora (außer), num movimento de exteriorização. Exprimir ou expressar (ausdrücken) é, portanto, forçar algo para fora, pressionar (drücken) até que se manifeste, venha à luz. A arte dos tons (Tonkunst), uma arte da intensidade (tôu tónou), falando sempre através da "comovedora violência do som [erschütternde Gewalt des Tones]" 26, faz prazer e desprazer emergirem violentamente de si mesma, usando para isso o que lhe é próprio: a maestria da intensidade.

Notas:

1 Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d. p. 407: "Não é em vão que a tragédia parece ser sábia e que nela se distingue Eurípides" (568a). Tal como ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 252: para ele, "Eurípides, ainda que sua execução seja falha em cada um dos outros pontos, apesar disso, apresenta-se certamente como o mais trágico dos tragediógrafos" (1453a 28-30).
2 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie. In: ______. Werke in drei Bänden. München: Hanser, 1954. v. I, p. 64.
3 Nietzsche menciona, especificamente, Tristão e Isolda de Wagner.
4 NIETZSCHE, F. Briefe. In: ______. Op. cit. v. III, p. 1040. (Friedrich Nietzsche an Erwin Rohde, 29. März 1871).
5 Idem, p. 1042. (Friedrich Nietzsche an Carl von Gersdorff, 21. Juni 1871).
6 É de se notar que, precisamente este termo "Artisten-Metaphysik" nunca foi utilizado por Schopenhauer em sua obra principal, O Mundo como Vontade e Representação.
7 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In: Werke in zehn Bänden (Zürcher Ausgabe). Zürich: Diogenes, 1977. v. I, p. 322.
8 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 130.
9 Idem, p. 127.
10 Idem, p. 133.
11 Nas palavras de HANSLICK. Do Belo Musical. Tradução de Nicolino S. Neto. Campinas: Unicamp, 1992. p. 156: "A arte não deve imitar servilmente a natureza, deve transformá-la".
12 Idem, p. 97.
13 SCHOPENHAUER. Op. cit. p. 335.
14 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 23.
15 Idem, p. 30.
16 Idem, ibidem.
17 NIETZSCHE, F. Nachgelassene Fragmente. In: Kritische Studienausgabe. Berlim: de Gruyter, 1988. v. VII, p. 360-1, 12[1]. Este fragmento em especial detem grandes semelhanças com as teses do pessimista alemão Eduard von Hartmann, autor de Filosofia do Inconsciente, obra que Nietzsche conheceu e apreciou.
18 Idem, p. 361. Cf. também Idem, p. 202, 7 [165]: "Não há nada em nós, que ao uno primordial seja reconduzido. A vontade é a forma mais geral da aparência [die allgemeinste Erscheinungsform]: i.e. a alternância entre dor [Schmerz] e prazer [Lust]".
19 Cf. NIETZSCHE, F. Zu Schopenhauer. In: Frühe Studien. München: DTV, 1994. v. III, p. 352-361.
20 NIETZSCHE. Kritische Studienausgabe. Op. cit. v. VII, p. 361.
21 Idem, ibidem.
22 Idem, p. 362.
23 SCHOPENHAUER. Op. Cit. p. 323.
24 WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução de Theodomiro Tostes. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 89.
25 NIETZSCHE. Werke in drei Bänden. Op. cit. v. I, p. 28.
26 Idem, ibidem.

sábado, outubro 14, 2006

A arte da Interpretação como Atividade.

MORAES, Jorge. A arte da Interpretação como Atividade. In: ______. DA INTERPRETAÇÃO: para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999, monografia, 66 p.


A arte da Interpretação como Atividade.


A interpretação em Nietzsche nos exige uma abordagem especial, na qual ela possa se desenvolver como atividade. Para isso, portanto, deveremos pôr em evidência o caráter pertinente a toda atividade: o seu irrevogável desdobramento no tempo. Assumindo de início esta posição diante da interpretação nietzschiana, pretendemos facilitar a visualização de sua complexa estrutura: uma cadeia de formas1 que agora poderá ser vista em sua profundidade.

É através do tempo que vemos se sucederem, umas às outras, as formas que compõem a atividade de interpretar; tal como em um eterno rearranjo, onde novas formas são moldadas a partir das formas que lhes são precedentes e que, portanto, lhes servem de base. Um modo de visualizar esta estrutura é através de um conjunto de máscaras encaixadas umas nas outras.2 Onde uma máscara, ao sobrepor-se a outra, dá nova forma à velha máscara, ao mesmo tempo em que usa esta velha máscara como base ou ponto de partida. Um exemplo desse tipo de mascaramento se encontra no Ecce Homo 3, onde Nietzsche afirma sobre o seu primeiro livro: ‘— pode-se tranqüilamente colocar meu nome ou ‘Zaratustra’ onde no texto há o nome de Wagner.’ Ou, quando em Genealogia da Moral 4, ele afirma: ‘uma força não sobreviveria se, inicialmente não tomasse emprestada a aparência das forças precedentes contra as quais luta.’5 (Em termos resumidos temos que uma nova máscara se utiliza da anterior como modelo, ao passo que, ao mesmo tempo, remodela os contornos desta mesma máscara anterior.)
Ao realizar esse esboço da interpretação nietzschiana como uma sucessão de formas ou máscaras (ou ainda, ao esboçar o ato de interpretar como uma sucessão de interpretações), queremos enfatizar a estrutura inusitada que lhe diz respeito, com a qual, sucessivamente, moldamos formas que são sempre interpretações a serem interpretadas. Isto porque cada forma é já uma interpretação que, por sua vez, ao ser tomada na cadeia de sucessão de formas, deve ser novamente interpretada. Neste sentido, revelar uma destas formas, ou desmascará-la, é o mesmo que sobrepor, a esta forma, uma nova máscara. Por esta razão, em Nietzsche, finda a oposição entre verdade e aparência. Deste modo, não se pode dizer que, quando uma máscara é desvendada, tem-se finalmente o verdadeiro rosto descoberto. Neste sentido, Nietzsche nos esclarece: ‘O que é agora para mim a “aparência” [Schein]! Não, na verdade, o contrário de alguma essência, — que sei dizer eu de uma essência, a não ser que enuncia os Predicados de suas aparências! Não é certamente uma máscara inerte que se poderia pôr e sem dúvida também tirar de um x desconhecido. A aparência para mim é a própria realidade ativa e viva.’6 Deste modo, ao desvendarmos uma máscara ou aparência, estamos de fato produzindo uma nova, mais “ativa e viva” — máscara.

Participa desta mesma estrutura inusitada, uma forma em especial: o aforismo. Tão caro ao próprio Nietzsche, o aforismo deve ser também compreendido como interpretação a ser interpretada. Nele, a antiga relação entre objeto e sua representação se desvanece e dá lugar a uma outra relação semântica, onde os símbolos perdem seu caráter definitivo —‘Tolo quem deles quiser tirar conhecimento’, afirma Zaratustra7. Reina agora uma arte, tanto no ler, quanto no escrever: “uma arte da interpretação” — ‘Um aforismo, se ele está bem cunhado e fundido, não está ainda “decifrado” pelo fato de ser lido, ainda falta muito pois a interpretação [Auslegung] está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação.’8
Este elogio ao aforismo, expresso em uma das obras mais sistemáticas de Nietzsche, nos leva a admitir o aforismo como elemento fundamental no estilo nietzschiano. Por isso, concordamos com Jaspers: ‘O procedimento de Nietzsche é aforístico; ele parece ter sido essencialmente o mesmo através de toda sua vida.’9
A forma aforismo, como interpretação a ser interpretada, ou a interpretação, como arte de interpretar, manifesta o poder criativo daquele que interpreta. Isto porque no aforismo não estão contidos e isolados todos os elementos desta arte. É por isso que ‘a interpretação está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação’. Sendo assim, se faz necessário agir, atuar, fazer arte, produzir e criar, para que, só então, tenhamos uma arte de interpretar. Por este motivo, podemos compreender a interpretação em Nietzsche como atividade criadora que, de modo especial, compõe paisagens, notas musicais, formas plásticas e palavras.10 Sempre em um infinito movimento, onde o desenho destas mesmas palavras poderá se recompor, mais uma vez, em outras notas, paisagens e formas, seguindo assim uma cadeia que se repetirá eternamente — movendo, incessantemente, o pêndulo da interpretação. 11

1. Um movimento infinito.

Ao contemplar esta arte da interpretação, o que temos em mente é o modo pelo qual ela se nos oferece; o modo pelo qual ela surge: como atividade, em eterno movimento, em um interminável jogo de diferenciação e renovação; produzindo uma obra que não se pode concluir; uma obra que, em sua eterna criação, nunca encontra seu fim.12 Prossegue-se infinitamente, interpretando o que, logo em seguida, deverá ser novamente interpretado, ...e mais uma vez, e outra, e assim por diante. —A limitação de toda interpretação assim o exige: que sua repetição seja ilimitada.
Todavia, este encadeamento de formas sem fim, no qual se desenvolve a atividade de interpretar, não se prolonga infinitamente apenas em uma única direção. A vã tentativa de finalmente concluir a interpretação se confunde assim com uma outra igualmente vã: a de encontrar o elemento originário, aquilo que deveria ser interpretado. Por isso Nietzsche pode afirmar: ‘Com a compreensão da origem aumenta a falta de significação da origem’13.
Concluir a interpretação e buscar sua origem são, portanto, problemas de mesma natureza. Pois o que é interpretado é desde sempre uma interpretação e não um fato. Isto porque simplesmente ‘não há fatos’14, ou qualquer outra coisa que se tenha como primeira. Eis um jogo que já não tinha fim e que agora também não tem começo. Procurar este começo, uma tarefa interminável, laboriosa e inútil, uma tarefa para Sísifo.
Encontramo-nos perdidos... Este é o efeito da palavra nietzschiana —talvez a mais aniquiladora. Dizer “não, justamente não há fatos, somente interpretações” 15 é dizer que não há mais referências ou lugar seguro para se apoiar. Por esta razão, o poder de destruição deste pensamento arruína até as evidências mais patentes. Nada mais pode ser considerado neutro ou estável, inclusive o cogito cartesiano: ‘E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não se parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo”’16. A diferenciação entre sujeito e objeto é reduzida a mero um preconceito o qual Nietzsche deixa para “os teóricos do conhecimento, os quais permanecem presos nas tramas da gramática (a metafísica do povo).” 17
Por isso, quando se interpreta, não se procura um sujeito-intérprete, ou uma origem qualquer da interpretação. Enfim, não se procura algo que seja anterior a qualquer interpretação; não se procura aquilo que se esconde atrás do visível, ou das aparências; não se procura por uma suposta coisa-em-si, fixa, sólida e isolada de tudo mais. Para Nietzsche: ‘As propriedades de uma coisa são os efeitos sobre outras “coisas”: se removermos as outras “coisas”, então, uma coisa não possui propriedades, i.e. não há coisa sem outras coisas, i.e. não há “coisa-em-si”’.18 Por este motivo, não se pode dizer que haja um “texto” 19 a ser interpretado, ou um verdadeiro rosto atrás das máscaras. Em vez disso só o que há são interpretações, que se desdobram em uma série infinita. — O próprio texto nietzschiano há de ser agora uma interpretação; e o que fazemos aqui é interpretá-lo. Não encontramos nele seu fundamento original, mas antes aquilo por nós interpretado, que agora passa a ser disponível, mais uma vez, a novas interpretações. Até seu próprio texto não escapa à sua visão rigorosa: ‘Acontecendo de também isto ser apenas interpretação — e vocês se apressarão em objetar isso, não? — bem, tanto melhor!’20 Por isso, concordamos com Jaspers quando ele diz: ‘A interpretação em Nietzsche é de fato uma interpretação do interpretar e, por esta razão, diferente de todas as anteriores, comparativamente interpretações ingênuas, que foram adotadas sem consciência de seu próprio caráter interpretativo.’ 21
Este ciclo interminável da interpretação só é possível porque interpretar é doar sentido (ou significado): ‘“Interpretação” e não explicação. (...) A introdução de sentido — na maioria dos casos, uma nova interpretação sobre uma interpretação antiga que se tornou incompreensível, que agora é apenas um sintoma.’22 Por tudo isso, trata-se de uma atividade criadora, inventiva. Todavia, cria-se algo novo a partir daquilo que nos é disponível. Deve-se, portanto, ser prudente, pois este disponível não pode ser uma folha em branco, um espaço vazio, neutro, isento de sentido.23 Todo disponível já se faz ocupado. Logo, para que haja interpretação, deve-se fazer o inevitável: rearrumar este espaço ocupado; reorganizá-lo, para que assim ele possa ganhar um novo sentido, aquele que nós acabamos de imprimir em seus limites. Esta é toda a nossa dádiva para com aquilo que interpretamos: recompor sob nova tessitura toda interpretação.
Trata-se, portanto, de fazer o “inevitável”. Porque ‘Mesmo nas vivências mais incomuns agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e não somos capazes de não contemplar como “inventores” algum evento. Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo — habituados a mentir. Ou, para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita, em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos.’24
Por outro lado, realizar essa arte só é possível porque há sempre alguma incompletude em todo interpretar. Porque só assim a estrutura da interpretação poderá comportar um contínuo rearranjo. Caso este rearranjo não fosse possível, também não seria possível o que Zaratustra chama de poetar: compor em unidade o que era, até então, apenas fragmentos dispostos ao acaso — eis todo seu poetar e desejo, a arte da interpretação.25
Trata-se de um impulso poético no qual está implicado um desejo de revitalização, tal como demonstra o último aforismo de Além do Bem e do Mal: ‘Eternizamos o que já não pode viver e voar muito tempo, somente coisas gastas e exaustas! Apenas para sua tarde eu tenho cores’. Vemos aqui uma eterna necessidade de renovação, de uma interpretação sempre nova. Pois a interpretação que já foi realizada eternizou ‘o que já não pode viver’. Por isso é preciso continuar interpretando, para que aquilo que está sendo interpretado possa continuar vivendo. Um exemplo dessa atividade ininterrupta, voltada para a manutenção da vida, já encontramos em Humano, demasiado humano:

"Todo escritor, uma vez que um livro tenha se desligado dele, fica novamente surpreso com o fato de este mesmo livro continuar a viver uma vida própria; para ele é como se tivesse se livrado de um pedaço de um inseto que agora seguiria o próprio caminho. Talvez ele quase o esqueça, talvez ele nem o entenda mais e tenha perdido aquelas asas sobre as quais voou quando imaginou o livro: enquanto ele busca seus leitores, acende a vida, faz feliz, aterroriza, engendra obras novas, vem a ser a alma de novos desígnios e empreendimentos — enfim, ele vive como um ser provido de alma e espírito, ainda que não seja humano. — Aquele autor tem colhido a sorte mais feliz e como homem velho pode dizer que todos os pensamentos e sentidos geradores de vida, fortalecedores, elevadores que estavam dentro dele continuam vivendo nos seus escritos, e que ele mesmo não seja mais nada além de cinzas, enquanto a chama tem sido resgatada e nascida mais adiante em todo lugar. — Se considerar que, não somente um livro, mas toda ação executada por um ser humano vem a ser de alguma forma a causa de outras ações, decisões, pensamentos, que tudo que acontece é inextricavelmente atado a tudo que virá a acontecer, chega-se a reconhecer a existência de uma verdadeira imortalidade, de movimento: aquilo que uma vez se moveu é enclausurado e eternizado na união total de todo ser como um inseto em âmbar." (HH I 208)

Todavia, ao observarmos nossa atividade de interpretar, vemos que toda interpretação, além de ser arte de reunir e compor fragmentos, prossegue mais adiante para tornar-se, mais uma vez, fragmento, entre outros, a ser novamente interpretado. Caso contrário, se não fossem fragmentos, mas já unidade, seriam demasiado rígidas e inescrutáveis, as interpretações. E por isso, simplesmente, jamais poderiam ser apreendidas. Equivaleriam assim a um enigma indecifrável, tornando impossível qualquer compreensão. Isto porque o que há para ser compreendido não pode se fazer sólido demais. Deve antes ser passível de ser moldado 26 e remodelado, para que nossa própria experiência, nossa própria vivência, possa assim dele se apropriar. Uma outra compreensão, privada de qualquer apropriação, exigiria um novo idioma, no qual pudéssemos forjar novas “interpretações”. Um idioma capaz de transferir não só palavras, mas também toda a experiência, toda a vivência daquele que, em poucos segundos, pronuncia suas frases. Em suma: ‘não basta utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências anteriores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro.’27 Ou ainda, numa visão mais radical: seria preciso que este mesmo que pronuncia fosse capaz de se fechar a novas experiências e, portanto, ao próprio desenrolar da vida, para que assim, sem o jogo da interpretação, pudesse compreender a si mesmo.
Para Nietzsche, ‘Não se tem ouvido para aquilo que não se tem acesso a partir da experiência.’28 Vemos então que é nossa experiência ou vivência quem interpreta, ou ainda, vemos que é nossa experiência ou vivência quem se apropria do que está sendo interpretado.29 E é por isso que a própria experiência passa a ser também a garantia da revolução dos sentidos, seu fator de infinita multiplicação 30 — pois o caráter múltiplo e fortuito do que é experimentado ao longo de uma vida torna também múltipla a possibilidade de sentidos, os quais, por isso mesmo, sempre poderão tornar-se outros sentidos. Já que a própria experiência, tomando para si a tarefa de interpretar (e, portanto, de delimitar o sentido) é constitutiva da disposição, do ânimo, ou ainda, do Páthos que prevalece em cada interpretação. Por isso, ‘A interpretação é em si mesmo um sintoma de certas condições psicológicas, também de um particular nível espiritual de juízos que prevalecem: Quem interpreta? — Nossas disposições.’ 31 Nesse sentido, segundo ânimos diferentes, sempre oscilantes, desenvolvem-se diferentes interpretações. Sendo assim, a experiência delimita o sentido (diferenciando-o dos demais, que partem de uma outra experiência), mas também os multiplica, porque ela própria se desdobra no tempo e leva consigo uma esteira de sentidos.

É com essa estrutura maleável e sempre em revolução que o “sólido demais” pode finalmente ser modelado e remodelado. Assim, aquilo que há para ser interpretado pode finalmente ser apropriado. Deste modo abdica-se da pretensão a uma exatidão, a uma absoluta e irrevogável certeza ou verdade que supere a arte da interpretação. ‘“Vontade de verdade” a esta altura é essencialmente a arte da interpretação’.32 Assim a interpretação pode se abrir para um múltiplo de possibilidades, numa infinita ‘transitoriedade’ [Vergänglichkeit], tal como uma ‘fruição da força procriadora e destruidora, como uma constante criação.’33

Notas:

1 Sobre a interpretação como atividade produtora de formas, temos uma boa referência em Nietzsche, FP, junho - julho de 1885, 38 [10] (v. nota 1 deste trabalho). Todavia, uma tal produção de formas, assim como a atividade de pensar, sentir e querer, também poderá ser compreendida como transformação, cf. Nietzsche, FP, abril - junho de 1885, 34 [252]: ‘Pensar é um transformar [Umgestalten] falsificando; sentir é um transformar falsificando; querer é um transformar falsificando.’
2 Como faz Gilles Deleuze em seu « Conclusions — sur la volonté de puissance et l’eternel retour ».
3 Nietzsche, EH “O nascimento da tragédia”, 4.
4 Nietzsche, GM III 10.
5 Cf. resume Deleuze, em seu Nietzsche e a filosofia, p. 4.
6 Nietzsche, GC 54
7 Nietzsche, Z, I, “Da virtude dadivosa”. Neste sentido, concordamos com Foucault (Nietzsche, Freud & Marx, p. 26), para quem a semiologia opõe-se à hermenêutica (i.e., à arte de interpretar). Isto porque, com a primeira se privilegia a existência de ‘símbolos que existem primariamente, originalmente, realmente, como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas.’ Enquanto que na hermenêutica vive-se em um tempo circular, onde se está obrigado a passar por onde já se passou, sempre num contínuo movimento de interpretação.
8 Nietzsche, GM, Prefácio 8.
9 Nietzsche, III, p. 400.
10 Cf. Nietzsche, BM 296: ‘Oh, que são vocês afinal, meus pensamentos escritos e pintados!’ Compreendemos esta, como várias outras referências que Nietzsche faz às artes, não apenas como uma mera metáfora para seus pensamentos. Vemos nessas referências uma apresentação da arte como um modo de ser da interpretação. Neste sentido, há algo de comum entre pensar, pintar e interpretar e este algo é a invenção artística. Também no mesmo livro, ele esclarece: ‘que o conceito de “filósofo” não seja restrito ao filósofo que escreve livros’ (§ 39).
11 O pêndulo simples, operando em minúsculos deslocamentos, mostra-se um excelente instrumento de medição da força da gravidade. Sendo conhecido o comprimento do fio que fixa o pequeno corpo oscilante a um ponto qualquer, teremos então que a freqüência de oscilação deste corpo aumentará quando aumentar a aceleração da força que puxa este mesmo corpo para baixo — conhecemos assim (pelas leis do movimento harmônico simples) a aceleração da gravidade. De maneira análoga, o pêndulo da interpretação também mede uma força que puxa para baixo. Pois afinal, que vontade faria de uma eterna repetição da interpretação o próprio objeto do querer. Frente a uma repetição infinita da interpretação, mede-se, portanto, a potência do querer — aquele que quer uma infinita repetição da interpretação supera, infinitamente, as forças que lhe arrastam para baixo (sobre a repetição como um processo seletivo em Nietzsche, temos uma referência em Deleuze, Diferença e repetição, p. 28 a 31).
12 Sobre a eternidade da interpretação, temos um bom exemplo em FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [82] e FP, outono de 1887, 9 [48]. No primeiro fragmento, Nietzsche identifica ‘Interpretação’ com ‘a introdução de sentido’, Sinn-hineinlegen. No segundo, ele afirma: ‘Introduzir um significado — esta tarefa ainda resta ser realizada, assumindo que não há até o momento qualquer sentido.’
13 Nietzsche, A 44.
14 Nietzsche, FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [175]. Também em FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [82]: ‘Não existem fatos, todas as coisas estão em fluxo, incompreensível, elusivo.’
15 FP, fim de 1886 - primavera de 1887, 7 [60]): ‘Nós não podemos contatar nenhum factun “em-si”: talvez seja um absurdo querer uma tal coisa.’
16 Nietzsche, BM 17. Ver também BM 54.
17 Nietzsche, GC 354, KSA V, p. 593.
18 Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [85].
19 Cf. Nietzsche, BM 22, p. 28: as leis da natureza ‘não são uma realidade de fato, um “texto”, mas apenas uma arrumação e distorção de sentido’.
20 Nietzsche, BM 22, pp. 28-29.
21 Jaspers, Nietzsche, II, p. 295.
22 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [82]: O problema da doação de sentido como atividade criadora será ainda abordado mais adiante.
23 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [109]: ‘A imodéstia do homem —: negar o sentido onde ele não o vê.’
24 Nietzsche, BM 192.
25 Cf. Nietzsche, Z II, “Da redenção”: ‘E este é todo o meu poetar [Dichten] e desejo, que eu componha [dichte] e reúna em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso.’
26 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1887, 9 [48], que nos esclarece: ‘Em um nível até mais alto, [interpretar] é estabelecer uma meta e moldar os fatos de acordo com ela’. No mesmo aforismo ele diferencia ‘interpretação ativa’ de ‘tradução conceptual meramente’. Isto evidencia, mais uma vez, que Nietzsche não acredita em uma interpretação que seja tal como uma decodificação de um suposto real, i.e. uma pura representação dele.
27 Nietzsche, BM 268, p. 182.
28 Nietzsche, EH, “Porque escrevo tão bons livros” 1. No mesmo sentido, encontramos um bom exemplo em BM 268: ‘— Palavras são sinais sonoros para conceitos; mas conceitos são sinais-imagens, mais ou menos determinados, para sensações recorrentes e associadas, para grupos de sensações. Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, Ter a experiência em comum com o outro.’ Ver também FP, abril–junho de 1885, 34 [252] (‘No Universo encontramos a força da assimilação, a qual pressupõe uma vontade de tornar as coisas semelhantes a nós.’), FP, junho–julho de 1885, 38 [2] (‘“Conhecimento”: trata-se da expressão de uma coisa nova através dos sinais de coisas já “conhecidas”, já experimentadas.’), assim como em FP, agosto–setembro de 1885, 41 [11] (‘No nosso pensamento, o essencial é ordenar o material novo nos esquemas antigos (leito de Procusto), tornar o novo idêntico ao antigo.’).
29 Note-se ainda que não se trata de uma afirmação da subjetividade: ‘“Tudo é subjetivo”, você diria; mas até isto é uma interpretação.’ (Nietzsche, FP, fim de 1886 - primavera de 1887, 7 [60]) Pois a interpretação em Nietzsche se estabelece para além da dicotomia objetivo–subjetivo, justamente porque não se trata de um sujeito que interpreta objetos (como veremos mais a diante).
30 Neste sentido, concordamos com Gilles Deleuze quando ele afirma que ‘A filosofia de Nietzsche só é compreendida quando levamos em conta seu pluralismo essencial. E, na verdade, o pluralismo (também chamado de empirismo) e a filosofia são uma única coisa. O pluralismo é a maneira de pensar propriamente filosófica, inventada pela filosofia: único fiador da verdade no espírito concreto, único princípio de um violento ateísmo.’ (Cf. Nietzsche e a filosofia, p. 3)
31 Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [189]. Preferimos traduzir aqui o termo alemão Affekt pelo termo português disposição. Isto porque uma outra opção, que seria o termo português afecção, é normalmente utilizada como sinônimo de doença, o que não consideramos de todo apropriado. Pois tanto Affekt, em alemão, como affectus, no latim, dizem respeito a um estado físico ou emocional que pode ser de boa ou má disposição.
32 Nietzsche, FP, outono de 1887, 9 [60]. Por isso, concordamos com Eugen Fink quando ele afirma a ‘desconfiança [de Nietzsche] frente ao rigor do conceito, à sua exatidão e força petrificantes’ (“Nova experiência do mundo em Nietzsche”, p. 168).
33 Nietzsche, FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [106].