domingo, novembro 19, 2006

Uma Breve História do Caos: entre Teogonia e Teodicéia.

“Sim, bem primeiro nasceu o Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresistível sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais”. Hesíodo. Teogonia.

O mais antigo, o primeiro deus da mitologia grega, segundo Hesíodo (VIII-VII a.C.), anterior tanto à Terra, quanto a Tártaro e a Eros, parece não ter qualquer preeminência diante das demais divindades. Ao contrário, em vários momentos do pensamento ocidental, o mais primitivo dos deuses acaba por ser de diversas formas desprivilegiado, o que de certo modo parece ocorrer mesmo nos versos de Hesíodo, onde esse deus assemelha-se a um abismo primordial, a partir do qual surgem divindades obscuras: Érebos (a antecâmara do inferno) e Noite. No poema grego, dessa última deusa nascem ainda “as forças da debilitação, da penúria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do tormento, do engano, da desaparição e da morte — em suma, tudo o que tem a marca do não-ser.”[1] Todas essas divindades (descendentes de Caos) vêm ao mundo não pela união amorosa, mas pela força de uma cissura, numa espécie de esquizogênese: marca inegável de seu antecessor primordial. Os únicos deuses da linhagem de Caos que nascem pela união (em vez da cissura) são Éter e Dia, também os únicos descendentes luminosos e positivos daquele primeiro deus. Eles vêm ao mundo pela força do amor, ou seja, de Eros, a força oposta à cissura de Caos — o deus da unidade amorosa. Talvez por isso, ele seja cantado por Hesíodo como “o mais belo entre os Deuses imortais” (kállistos).

Eros e Caos reaparecem também em um outro mito, na verdade anterior a Hesíodo, comumente atribuído aos cultos órficos, mas que encontra uma bela adaptação nos versos de Aristófanes (450 a.C.-388 a.C):

“No princípio só havia o Caos, a Noite, o obscuro Érebo, e o profundo Tártaro. A terra, o ar e o céu não existiam ainda. [695] Primeiramente, a Noite de negras asas botou um ovo sem germe no seio das profundezas infinitas de Érebo, e a partir daí, depois da revolução de longas eras, o gracioso Eros saltou brilhante com suas asas douradas, rápidas como os vendavais da tempestade. Ele uniu-se ao obscuro e alado Caos no profundo Tártaro e assim, depois disso, chocou nossa raça, a qual foi a primeira a ver a luz. [700] A [raça] dos imortais não existiu até que Eros tivesse reunido todos os ingredientes do mundo e, a partir desse matrimônio, o Céu, o Oceano, a Terra e a raça imperecível dos divinos deuses saltou para a existência. Assim nossa origem é muito mais velha do que a dos moradores do Olimpo. Nós somos a descendência de Eros; há mil provas para demonstrar isso. Nós temos asas e nós oferecemos ajuda aos amantes. [705] Quantos belos jovens, que haviam jurado permanecer insensíveis, abriram suas coxas por causa de nosso poder e se renderam a amantes [mais velhos] quase ao término de sua mocidade, sendo conduzidos [ao amor] por presentes como uma codorniz, um flamingo, um ganso, ou um galo.”[2]

As palavras do corifeu de As Aves mostram como o Caos, mais uma vez, está ligado às forças do não-ser (Noite, Érebus e Tártaro) e mostram também como somente através da intervenção de Eros surge a vida, sob a forma da primeira raça “a ver a luz”. Em seu ato de criação, foi preciso que Eros reunisse todos os ingredientes necessários para que finalmente surgisse a vida. Foi preciso que a unidade de Eros dominasse a cissura de Caos e assim pudessem surgir os deuses imortais. Todavia, é inegável o casamento entre esses dois princípios opostos: a criação não é um atributo apenas de Eros ou Caos, mas surge do encontro de ambos os deuses.

Apesar desse casamento descrito pelo célebre comediógrafo de Atenas, o privilégio de Eros, o mais belo dos deuses, em relação ao Caos e às outras divindades reaparece em vários momentos do pensamento ocidental, onde a unidade que é representada pelo amor é tomada como o princípio fundador de todas as coisas. Por exemplo, em Parmênides (515-445 a.C.): “Como primeiro concebeu [daimon], antes de todos os deuses, Eros”.[3]

Também em Platão (427-348 a.C.), num diálogo onde o próprio Hesíodo aparece como referência, afirma Fedro: “Assim, achamos que a antiguidade de Eros é universalmente admitida, e verdadeiramente ele é a antiga fonte de todos os nossos mais elevados deuses.”[4] Essa frase do Banquete, em especial, soa de forma estranha justamente ao lado do verso de Hesíodo. Afinal, como Eros poderia ser anterior ao próprio Caos na Teogonia? Isto se dá apenas porque Caos não aparece exatamente como um deus, diria Aristóteles, mas como um princípio, uma arxé ; todavia, uma arxé negativa, totalmente oposta à unidade de Eros. Aristóteles admite que tanto Caos quanto Oceano são tomados como princípio (arxé) para alguns poetas, mas ele defende a unidade como princípio, em lugar da dualidade ou da pluralidade.[5]

Muito embora não encontremos uma clara negatividade ontológica de Caos na antiguidade clássica, do ponto de vista estético e moral ela é inegável. Pois esse deus primitivo sempre aparece associado a males, enquanto a ordem é referida à beleza[6]. É considerado não apenas como algo anterior a uma ordenação, mas por isso mesmo algo destituído de toda beleza.[7] Seguindo essa mesma linha, Aristóteles (384-322 a.C.), por exemplo, associa a ordem ao belo e ao bem, e o caos ao feio e ao mal. Depois de citar a célebre passagem da Teogonia sobre o surgimento de Caos, Gaia e Eros, Aristóteles afirma o seguinte:

“Assim insinuando [Hesíodo] que deve haver no mundo alguma causa a qual mova as coisas e as combine. (...) Agora desde que ficou aparente que a natureza também contém o oposto do que é bom, i.e. não só ordem e beleza, mas desordem e feiúra; e que há mais coisas piores e comuns do que há boas e belas: devido a isto outro pensador introduziu o Amor e o Ódio como as causas respectivas destas coisas”. [8]

Séculos mais tarde, a negatividade do deus Caos ganha vida sob a forma do conceito de desordem. No período da escolástica, por exemplo, Nicolau de Cusa (1401-1464) descreve o “tenebroso caos” como sendo a massa disforme, matéria a partir da qual o entendimento e a razão formam, finalmente, a realidade.[9] Desse modo, embora seja dotado de uma massa ou matéria, lhe faltaria o estatuto de realidade. Essa mesma ausência de realidade, encontramos ainda no renascimento. Com Agrippa (1486-1535), o caos é visto como “o que nunca é e nem vem a ser, aquilo que torna os sentidos completamente errados.”[10] Portanto, a negatividade ontológica do caos passa a ser cada vez mais certa. Caos e não-ser identificam-se completamente.

Um século depois, Descartes (1596-1650), em seu Discurso do Método, alude à possibilidade de que o Deus cristão pudesse ter criado um mundo caótico “tão tumultuado quanto os poetas possam nos fazer acreditar”,[11] mas que, em seguida, não fizesse outra coisa senão deixar a natureza agir “conforme as leis estabelecidas por Ele.” Alicerçando seus argumentos a partir do princípio da perfeição divina, Descartes demonstra como ao menos “parte da matéria desse caos”, sendo submetida às leis da natureza, deve “dispor-se e arranjar-se de uma certa maneira que a torne semelhante” a nosso Universo. Mas afirma também ser “muito mais provável que, desde o início, Deus o tenha tomado tal como devia ser.” Assim, de modo análogo ao que utilizou para expurgar o Deus enganador em suas Meditações, Descartes expurga também o caos do Universo.

Algumas décadas depois, num contra-movimento, Pascal (1623-1662) encontra o caos na própria natureza humana, dando largos passos em direção ao romantismo e ao pessimismo do século XIX. Neste sentido, ele afirma:

“Que quimera é então o ser humano! Que estranha aparência! Que caos, que objeto de contradições! Juiz de todas as coisas, débil verme da terra, dono da verdade, cheio de incertezas, prêmio e excremento do Universo! (...) um monstro incompreensível.”[12]

Para ele, o caos não é nem um vazio, nem uma ilusão. Em vez disso, é a própria realidade viva e incompreensível no interior dos homens.

Mais de 20 séculos depois de Hesíodo, Leibniz (1646-1716) escreve sua própria história divina, não sob a forma de uma Teogonia politeísta (como a do poeta grego); mas em uma Teodicéia cristã. Nessa obra de 1710, descrevendo o processo de formação dos corpos dos animais, aliás no mesmo tom de Descartes, ele afirma o seguinte:

“Isso pode vir apenas do infinitamente poderoso e infinitamente sábio autor (Urheber) de todas as coisas, o qual criou tudo na ordem e antecipadamente forneceu lá desde o início cada ordenação e arte. Não há caos no interior das coisas nem no organismo em todas as partes da matéria, cuja ordenação se origina de Deus”.[13]

Quatro anos mais tarde, o autor da Monadologia confirma essa tese em sua célebre obra: “Assim, não há nada baldio, nada de estéril, nada de morto no universo, nenhum caos, nenhuma confusão salvo em aparência”.[14]

Vemos, portanto, como, da antiguidade a Leibniz e sob formas diferentes, houve uma hegemonia da ordem nos diversos discursos filosóficos sobre o caos. Assim, ele foi visto predominantemente[15] de maneira negativa: ou do ponto de vista ontológico, ou estético, ou ainda (na maioria das vezes) moral. Todavia, a história do caos não finda no século XVIII. Ao contrário, ela está apenas iniciando seus primeiros passos. A partir daí o caos passará verdadeiramente a ser pensado; estando presente agora não apenas na filosofia, mas também nas ciências. Em vez de ser visto como um impeditivo para o conhecimento humano, ele começa a se transformar num elemento fundamental para a compreensão dos vários fenômenos que cercam a vida humana: das artes à biologia, da física às ciências sociais.

Notas:

[1] TORRANO, Jaa. A quádrupla origem da totalidade, p. 44.
[2] ARISTÓFANES, As Aves. Versos 605-706. Comparar com a tradução brasileira de Mário da Gama Kury (ARISTÓFANES, As Aves, p. 139).
[3] PARMÊNIDES, Fr. 13. In: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores Originários, p.53.
[4] PLATÃO. Banquete [178c]. In: ______. Collected Dialogues. p. 533.
[5] A explicação encontra-se em ARISTÓTELES. Metaphysics [1091b5-6]. In: ______. The complete works of Aristotle. p. 1724. Comparado com texto bilíngüe Aristotle's Metaphysics, ed. W.D. Ross.
[6] Cf. PLATÃO. Político [273b-c], op. cit. p. 1038.
[7] Cf. PLATÃO. Timeu [53], op. cit. p. 1179-8.
[8] ARISTÓTELES. Metafísica I [985a1-10].
[9] NICOLAU DE CUSA. Da Douta Ignorância. In: ______. Wichtigste Schriften, p. 52, 98.
[10] AGRIPPA. O Discurso contra a Incerteza e Vaidade das Ciências e das Artes. In: ­­­­­______. Die Eitelkeit und Unsicherheit der Wissenschaften und die Verteidigungsschrift, p. 7.
[11] DESCARTES. Discurso do Método, p. 52.
[12] PASCAL. Pensamentos sobre a Religião, p. 234.
[13] LEIBNIZ, G. W. A Teodicéia, p. 21.
[14] LEIBNIZ, G. W. A Monadologia § 69. In: ______. Selections, p. 547. Ver também p. 548.
[15] Afirmamos “predominantemente” apenas porque, vez por outra, é possível encontrar exceções à regra, isto é, pensadores que de algum modo, ainda que indiretate e sem se referir especificamente aos termos “caos”, “desordem” etc. foram capazes de oferecer alguma contribuição significativa para o pensamento do caos (em vez de nadificá-lo, como os demais). Por exemplo: Giambattista Vico, cf. DUKE, Marshall. Chaos Theory and Psychology: Seven Propositions, p. 282: “É intrigante notar que o mesmo conceito de ‘vidas dentro de vidas’ em todas as áreas da função natural e humana também foi proposto há uns trezentos anos nos escritos de Giambattista Vico. As idéias de Vico, tal como as dos mais recentes teóricos do caos, também começaram a se infiltrar na psicologia moderna”. Além de Vico, talvez Lucrécio e muito provavelmente Paracelso também se insurgiram contra a tendência que foi predominante da antiguidade a Leibniz. Já os pré-socráticos serão discutidos mais adiante.

Uma Breve História do Caos: o fim do século XVIII.

Em oposição a seus antecessores, David Hume (1711-1776) parece inaugurar um novo pensamento sobre o caos. A partir do filósofo escocês, a muralha que supostamente dividia a fronteira entre o mundo da ordem e o da desordem começa a dar sinais de desmoronamento. Embora apareça de forma sutil, o grande marco dessa união humeana entre caos e ordem é um texto publicado postumamente em 1779. Trata-se de um diálogo onde Philo (um dos personagens) afirma o seguinte:

“Em todo caso, embora revoluções inumeráveis produzam afinal algumas formas, um caos, cujas partes e órgãos se ajustam de algum modo, é garantido no fim; pois elas ganham forma sob constante mudança da matéria.”[1]

Vemos aqui um privilégio da transformação, a partir da qual surgem novas formas. Todavia, essas formas não paralisam as “revoluções inumeráveis” e a “constante mudança da matéria”. Muito embora Philo não seja o “herói” de Hume, o narrador do diálogo dá razão a ele afirmando que Philo “sugere uma hipótese nova de cosmogonia que não é absolutamente absurda e improvável.” Isso se torna claro quando o narrador se pergunta: “Há um sistema, uma ordem, uma economia de coisas, pela qual a matéria pode preservar aquela agitação perpétua que parece essencial a ela e ainda manter uma constância nas formas que produz?” A resposta é simplesmente afirmativa: “Certamente há uma tal economia”[2].

Vemos, portanto, um convívio entre a “agitação perpétua” essencial à matéria e “uma constância nas formas” produzidas. Desse modo, embora de forma pontual e incipiente, observamos em Hume como o processo de ordenação está intimamente ligado a uma contínua e eterna revolução. Nesse processo, não há qualquer esboço de conclusão, uma vez que, nas palavras de Philo, o caos “é garantido até o fim”. Talvez aí a forma ou a ordenação seja conquistada através do próprio caos e não por uma intervenção externa de qualquer ordem. Além disso, uma paralisação e cristalização em um momento final não seria possível. Dá-se aí um privilégio, não apenas do devir ou da constituição de uma forma, mas do devir forma.

Trata-se, portanto, de uma afirmação radical. Todavia, devemos nos lembrar que de modo algum essa mudança de paradigma é restrita apenas à filosofia. No mesmo período surge na política, a era das revoluções; na economia, a teoria liberal de Adam Smith; e mais tarde, na biologia, a tese da evolução das espécies de Darwin. O solo comum presente em todas essas manifestações do pensamento humano é o de que a desordem é intimamente relacionada ao estabelecimento de qualquer ordem possível. Em outras palavras, a desordem é produtiva e aquilo que ela produz pode, inclusive, ser algo de desejável.

Notas:

[1] HUME, David. Dialogues concerning Natural Religion. In: ______. Hume's Dialogues concerning Natural Religion, p. 184. Ver também a tradução alemã em HUME, David. Dialoge über natürliche Religion, p. 92-93.
[2] HUME, David. Dialogues concerning Natural Religion, p. 183.

Uma Breve História do Caos: Do Xáos ao Chaos.

Esse longo percurso da antiguidade à modernidade exige, entretanto, um cuidado filológico; um tratamento mais apurado daquilo que poderia ser considerado a “mesma” palavra. Esse tratamento pode apontar para grandes variações semânticas onde somente pequenas variações fonéticas são percebidas. Por isso, a valorização do chaos em Hume não pode ser imediatamente comparada com a desvalorização do xáos em Platão ou em Aristóteles, ou com a nadificação do chăŏs em Nicolau de Cusa, em Agrippa, Descartes, ou em Leibniz. Se em todos eles o sentido de caos parece estar próximo do que modernamente poderíamos chamar de desordem, essa desordem assumiu ao longo da história da filosofia aspectos bastante distintos: para os antigos (mais precisamente, os gregos), ela assumiu a forma de uma cisão[1], de uma ruptura a partir da qual surge o mundo; por outro lado, para os modernos, ela assume a forma de uma profusão de encontros não-delineados, indefinidos, como em uma mistura violenta e ininteligível. Embora sejam sentidos diametralmente opostos (uma cissura irascível versus uma unidade disforme e violenta), em ambos os casos, encontramos o sinônimo de desarmonia: ou bem uma desarmonia da separação produzida pelo xáos grego, ou bem uma desarmonia da fusão no emaranhado do caos moderno.

Uma das formas pela quais podemos verificar essa inversão do caos, de cissura à unidade, pode ser, por exemplo, através de uma leitura de Aristóteles, no original, comparando-a com a tradução moderna do mesmo texto. Na passagem que escolhemos, quando o ex-discípulo de Platão retoma a unidade ou a mistura presente em Anaxágoras e em outros pré-socráticos, essa mesma mistura passa a ser considerada, aos olhos dos tradutores modernos, como algo caótico. Mas, como podemos ver, esse caos não está presente na letra de Aristóteles:

“tudo é gerado a partir do ser, mas do ser em potência e não em ato. E este é o ‘um’ de Anaxágoras; pois tanto o seu ‘tudo unido’ (homoú pánta), como a ‘mistura’ (mígma) de Empédocles e de Anaximandro, como também a doutrina de Demócrito seria expressa melhor como ‘tudo é uno em potência, mas não em ato.’” [2]

Desse modo, Aristóteles não rejeita a unidade de todas as coisas na origem, mas apenas a corrige, mostrando que essa unidade não existe em ato mais apenas em potência. Porém, mais do que isso, o importante é que ele não identifica essa unidade com o caos, como fazem os modernos em suas traduções. Por exemplo, na tradução da mesma passagem feita pelo filósofo e tradutor alemão Adolf Lasson[3] (1832-1917), publicada em 1907, onde se lê homoú pánta" (literalmente, “tudo unido”), Lasson traduz “chaotisches Durcheinander[4] (cuja melhor tradução para o português é “confusão caótica”). Essa compreensão do que seja o caos está presente em uma infinidade de autores modernos, mas em nenhum grego, simplesmente porque a palavra xáos (em grego) não permite essa identificação com a unidade. Por outro lado, de Shakespeare a Novalis, encontramos inumeráveis formas dessa identidade entre caos e a profusão de encontros não-delineados, indefinidos e ininteligíveis. No fragmento 95 de Pólen, por exemplo, Novalis afirma:

“Antes da abstração tudo é uno, mas uno como o caos; depois da abstração tudo está novamente unido, mas esta união é uma ligação livre de seres autônomos, autodeterminados. A partir de uma turba desenvolveu-se uma sociedade, o caos foi transformado em um mundo múltiplo.”[5]

Por isso, por compartilhar do mesmo pensamento de sua época (do mesmo solo em que pensaram seus contemporâneos), Lasson, ao verter o “tudo unido” como “chaotisches Durcheinander”, na verdade estava interpretando essa unidade como caótica. Mas a unidade, para um grego, vem de Eros e não de Caos, e simplesmente por essa razão ela é valorizada. Para o moderno, ao contrário, essa unidade é falta de esquadrinhamento, falta de divisão, enfim, falta de ordem — ordem que se expressa como “cada lugar para uma coisa; cada coisa em seu lugar”.

Notas:

[1] Isso inclusive se sustenta etimologicamente, cf. LIDDELL; SCOTT. Greek-English Lexicon, p. 1976. Ver também Xános e Xánuw, respectivamente, “boca” e “falar com a boca bem aberta” (Idem, ibidem). Assim, Heidegger interpreta também Xáos como “bocejo”, o que se fende em dois (auseinander klaffen), cf. HEIDEGGER. Nietzsche II, p. 91.
[2] Ver ARISTÓTELES. Metafísica (1069b 20-4). Edição bilíngüe de W.D. Ross.do. , que entretanto, a partir de Hume estx unidade
[3] Filósofo e professor na Universidade de Berlim, além de tradutor de Aristóteles e Giordano Bruno.
[4] ARISTOTELES. Metafísica (1069b 20-4). Trad. Adolf Lasson, p. 163.
[5] NOVALIS. Blüthenstaub. In: ______. HKA II, p. 454-456.

Uma Breve História do Caos: Caosmos.

Se houve uma inversão no sentido de caos (tal como nos parece e como informam os textos), essa inversão começa a se dissolver quando ordem e desordem passam a ser intimamente inter-relacionadas, como já indicava Hume. Ou seja, quando um jogo dinâmico e instável passa a estar sempre presente na ordenação do mundo. Nesse sentido, a ruptura, a cisão, a separação passam a conviver, lado a lado, com a unidade indiscriminada, a miscelânea, a falta de divisão e de separação. Esse casamento entre Caos e Eros, que em Aristófanes já havia produzido a raça das aves e em Hesíodo havia permitido o nascimento de Éter e de Dia, deixa de ser o encontro primordial entre duas instâncias distintas para se tornar agora um único conceito, uma unidade, a qual, seguindo James Joyce, podemos chamar caosmos.[1] Não mais o caos-ruptura da antiguidade, não mais o caos-unidade da modernidade, mas um casamento entre ambos. Assim, a multiplicidade desordenada quando devém forma produz uma ruptura com o que está a sua volta. De modo inverso essa nova forma é diluída em uma nova multiplicidade. Essa interação entre caos e forma se dá quando cada forma pode se perder mergulhada no todo disforme e novamente ser encontrada em cada parte, numa relação com todas as outras partes desse mesmo todo. Tudo se passa como se uma grande rede de interações impedisse que algo se destacasse, que algo viesse à tona. Mesmo assim, a todo o momento, emergem formas impregnadas dessa miríade de interações caóticas.

A dificuldade em pensar essa junção entre forma e falta de forma está sempre presente em nosso intelecto, o qual funciona como um discriminador que repetidas vezes deduz “ou A possui forma ou A é disforme”. Entretanto, encontramos esse modelo de caosmos numa situação limite da linguagem, isto é, na literatura de James Joyce. Nas palavras de Philip Kuberski: “Joyce estava interessado em ambos, desintegração e recombinação, aniquilação e transmutação”. [2] Neste sentido, o fluxo de linguagem sempre em ruptura e reintegração, faz surgir e se dissolver cada significado mediante a interação de palavras, tal como afirma Catherine Keller:

“O riacho feliz da linguagem de Joyce revela por si (...) não a falta de sentido, mas um excesso de sentido nos quais cada palavra do livro, como toda unidade do universo, vem emaranhada no imprevisível, no alusivo múltiplo, nas interfluências.”[3]

Mas não apenas isso, o conceito de Joyce segue em consonância com a moderna teoria do caos, onde analogamente uma profusão de interações dá à luz a fenômenos naturais distintos, que mais uma vez interferem no mesmo sistema de onde surgem, promovendo assim sempre uma relação de instabilidade.

“Foi dito que o chaosmos de Joyce pressagia a ciência do caos, tal como se aprende a conjugar as multiplicidades incontáveis de interações entre a ponta de uma asa de uma borboleta, uma brisa, um rio, um oceano, uma tempestade distante.”[4]

Essa consonância entre Joyce e as modernas teorias do caos findam por nos levar de volta à Grécia em seus primórdios. Não mais a Hesíodo e seu deus da cissura, mas a filósofos como Heráclito e também Epicuro. Nesse sentido, é interessante notar como a teoria do caos foi capaz de recuperar uma filosofia que permaneceu sempre à margem durante séculos. Assim, Prigogine não deixa dúvidas ao afirmar: “Foi Epicuro o primeiro a estabelecer os termos do dilema a que a física moderna conferiu o peso de sua autoridade.”[5] Epicuro não se interessava pelo deus Caos (como Hesíodo), nem possuía um discurso sobre uma união desordenada e primordial (como Anaxágoras e Anaximandro), a contribuição do filósofo grego foi bem mais sutil. Ela diz respeito a uma associação entre a auto-organização e a falta de equilíbrio e instabilidade do mundo. Em outras palavras, ela privilegia uma desordem intimamente ligada à ordem, mais uma vez, numa espécie de caosmos.

Esse chaosmos, presente no clínamen de Epicuro e intuído de maneira pontual no filósofo escocês não poderia passar despercebido no campo das artes, onde tal união foi excepcionalmente valorizada. Na estética esse novo caos ganhou espaço, justamente para explicar uma nova forma de obra de arte. Mas a importância do caos no campo das artes se dá também por uma outra razão. Esse campo é o lugar privilegiado onde a criação encontra o seu momento mais extremo; onde a invenção tem o seu ponto mais alto; onde surgem qualidades, “jamais vistas, jamais pensadas.”[6] Por essa razão, entendemos que uma compreensão mais apurada do conceito de caos implica numa compreensão do universo artístico no qual ele está inserido, tal como esse conhecimento implica numa estética do caos.

Notas:

[1] Tomamos emprestado aqui a expressão de James Joyce: "[E]very person, place and thing in the chaosmos of Alle anyway connected with the gobblydumped turkery was moving and changing every part of the time" (JOYCE, J. Finnegans Wake, p. 118). O conceito filosófico, entretanto, vem de Deleuze, o qual (ao menos provisoriamente) nos parece o mais apropriado para explicitar essa fusão entre ordem e desordem, cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido, p. 269-70. Essa ordem, que não se opõe ao caos, o filósofo Francês encontra também em Nietzsche. Todavia, se compreendemos corretamente o conceito de Deleuze, nos parece que Schelling merece o privilégio de ter sido o primeiro a intuir a fusão entre ordem e desordem no âmbito das artes.
[2] Chaosmos: Literature, Science, and Theory, p. 64.
[3] KELLER. C. Face of the Deep: A Theology of Becoming, p. 12.
[4] Idem, ibdem.
[5] PRIGOGINE, Ilya. O Fim das Certezas, p. 17.
[6] GUATARRI, Félix. Caosmose, p. 135. Apesar de concordarmos com Guatarri, precisamos admitir que não apenas nas artes, mas também na guerra encontramos um lugar privilegiado onde há um jogo entre caos e criação. Todavia, o tratado de Clausewitz sobre a guerra somente é publicado em 1837, bem depois das primeiras reflexões sobre a relação entre caos e criação artística.