sábado, outubro 14, 2006

A arte da Interpretação como Atividade.

MORAES, Jorge. A arte da Interpretação como Atividade. In: ______. DA INTERPRETAÇÃO: para uma compreensão da produção de sentidos na filosofia de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999, monografia, 66 p.


A arte da Interpretação como Atividade.


A interpretação em Nietzsche nos exige uma abordagem especial, na qual ela possa se desenvolver como atividade. Para isso, portanto, deveremos pôr em evidência o caráter pertinente a toda atividade: o seu irrevogável desdobramento no tempo. Assumindo de início esta posição diante da interpretação nietzschiana, pretendemos facilitar a visualização de sua complexa estrutura: uma cadeia de formas1 que agora poderá ser vista em sua profundidade.

É através do tempo que vemos se sucederem, umas às outras, as formas que compõem a atividade de interpretar; tal como em um eterno rearranjo, onde novas formas são moldadas a partir das formas que lhes são precedentes e que, portanto, lhes servem de base. Um modo de visualizar esta estrutura é através de um conjunto de máscaras encaixadas umas nas outras.2 Onde uma máscara, ao sobrepor-se a outra, dá nova forma à velha máscara, ao mesmo tempo em que usa esta velha máscara como base ou ponto de partida. Um exemplo desse tipo de mascaramento se encontra no Ecce Homo 3, onde Nietzsche afirma sobre o seu primeiro livro: ‘— pode-se tranqüilamente colocar meu nome ou ‘Zaratustra’ onde no texto há o nome de Wagner.’ Ou, quando em Genealogia da Moral 4, ele afirma: ‘uma força não sobreviveria se, inicialmente não tomasse emprestada a aparência das forças precedentes contra as quais luta.’5 (Em termos resumidos temos que uma nova máscara se utiliza da anterior como modelo, ao passo que, ao mesmo tempo, remodela os contornos desta mesma máscara anterior.)
Ao realizar esse esboço da interpretação nietzschiana como uma sucessão de formas ou máscaras (ou ainda, ao esboçar o ato de interpretar como uma sucessão de interpretações), queremos enfatizar a estrutura inusitada que lhe diz respeito, com a qual, sucessivamente, moldamos formas que são sempre interpretações a serem interpretadas. Isto porque cada forma é já uma interpretação que, por sua vez, ao ser tomada na cadeia de sucessão de formas, deve ser novamente interpretada. Neste sentido, revelar uma destas formas, ou desmascará-la, é o mesmo que sobrepor, a esta forma, uma nova máscara. Por esta razão, em Nietzsche, finda a oposição entre verdade e aparência. Deste modo, não se pode dizer que, quando uma máscara é desvendada, tem-se finalmente o verdadeiro rosto descoberto. Neste sentido, Nietzsche nos esclarece: ‘O que é agora para mim a “aparência” [Schein]! Não, na verdade, o contrário de alguma essência, — que sei dizer eu de uma essência, a não ser que enuncia os Predicados de suas aparências! Não é certamente uma máscara inerte que se poderia pôr e sem dúvida também tirar de um x desconhecido. A aparência para mim é a própria realidade ativa e viva.’6 Deste modo, ao desvendarmos uma máscara ou aparência, estamos de fato produzindo uma nova, mais “ativa e viva” — máscara.

Participa desta mesma estrutura inusitada, uma forma em especial: o aforismo. Tão caro ao próprio Nietzsche, o aforismo deve ser também compreendido como interpretação a ser interpretada. Nele, a antiga relação entre objeto e sua representação se desvanece e dá lugar a uma outra relação semântica, onde os símbolos perdem seu caráter definitivo —‘Tolo quem deles quiser tirar conhecimento’, afirma Zaratustra7. Reina agora uma arte, tanto no ler, quanto no escrever: “uma arte da interpretação” — ‘Um aforismo, se ele está bem cunhado e fundido, não está ainda “decifrado” pelo fato de ser lido, ainda falta muito pois a interpretação [Auslegung] está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação.’8
Este elogio ao aforismo, expresso em uma das obras mais sistemáticas de Nietzsche, nos leva a admitir o aforismo como elemento fundamental no estilo nietzschiano. Por isso, concordamos com Jaspers: ‘O procedimento de Nietzsche é aforístico; ele parece ter sido essencialmente o mesmo através de toda sua vida.’9
A forma aforismo, como interpretação a ser interpretada, ou a interpretação, como arte de interpretar, manifesta o poder criativo daquele que interpreta. Isto porque no aforismo não estão contidos e isolados todos os elementos desta arte. É por isso que ‘a interpretação está então apenas começando e é ainda necessária uma arte da interpretação’. Sendo assim, se faz necessário agir, atuar, fazer arte, produzir e criar, para que, só então, tenhamos uma arte de interpretar. Por este motivo, podemos compreender a interpretação em Nietzsche como atividade criadora que, de modo especial, compõe paisagens, notas musicais, formas plásticas e palavras.10 Sempre em um infinito movimento, onde o desenho destas mesmas palavras poderá se recompor, mais uma vez, em outras notas, paisagens e formas, seguindo assim uma cadeia que se repetirá eternamente — movendo, incessantemente, o pêndulo da interpretação. 11

1. Um movimento infinito.

Ao contemplar esta arte da interpretação, o que temos em mente é o modo pelo qual ela se nos oferece; o modo pelo qual ela surge: como atividade, em eterno movimento, em um interminável jogo de diferenciação e renovação; produzindo uma obra que não se pode concluir; uma obra que, em sua eterna criação, nunca encontra seu fim.12 Prossegue-se infinitamente, interpretando o que, logo em seguida, deverá ser novamente interpretado, ...e mais uma vez, e outra, e assim por diante. —A limitação de toda interpretação assim o exige: que sua repetição seja ilimitada.
Todavia, este encadeamento de formas sem fim, no qual se desenvolve a atividade de interpretar, não se prolonga infinitamente apenas em uma única direção. A vã tentativa de finalmente concluir a interpretação se confunde assim com uma outra igualmente vã: a de encontrar o elemento originário, aquilo que deveria ser interpretado. Por isso Nietzsche pode afirmar: ‘Com a compreensão da origem aumenta a falta de significação da origem’13.
Concluir a interpretação e buscar sua origem são, portanto, problemas de mesma natureza. Pois o que é interpretado é desde sempre uma interpretação e não um fato. Isto porque simplesmente ‘não há fatos’14, ou qualquer outra coisa que se tenha como primeira. Eis um jogo que já não tinha fim e que agora também não tem começo. Procurar este começo, uma tarefa interminável, laboriosa e inútil, uma tarefa para Sísifo.
Encontramo-nos perdidos... Este é o efeito da palavra nietzschiana —talvez a mais aniquiladora. Dizer “não, justamente não há fatos, somente interpretações” 15 é dizer que não há mais referências ou lugar seguro para se apoiar. Por esta razão, o poder de destruição deste pensamento arruína até as evidências mais patentes. Nada mais pode ser considerado neutro ou estável, inclusive o cogito cartesiano: ‘E mesmo com “isso pensa” já se foi longe demais; já o “isso” contém uma interpretação do processo, não se parte do processo mesmo. Aqui se conclui segundo o hábito gramatical: “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo”’16. A diferenciação entre sujeito e objeto é reduzida a mero um preconceito o qual Nietzsche deixa para “os teóricos do conhecimento, os quais permanecem presos nas tramas da gramática (a metafísica do povo).” 17
Por isso, quando se interpreta, não se procura um sujeito-intérprete, ou uma origem qualquer da interpretação. Enfim, não se procura algo que seja anterior a qualquer interpretação; não se procura aquilo que se esconde atrás do visível, ou das aparências; não se procura por uma suposta coisa-em-si, fixa, sólida e isolada de tudo mais. Para Nietzsche: ‘As propriedades de uma coisa são os efeitos sobre outras “coisas”: se removermos as outras “coisas”, então, uma coisa não possui propriedades, i.e. não há coisa sem outras coisas, i.e. não há “coisa-em-si”’.18 Por este motivo, não se pode dizer que haja um “texto” 19 a ser interpretado, ou um verdadeiro rosto atrás das máscaras. Em vez disso só o que há são interpretações, que se desdobram em uma série infinita. — O próprio texto nietzschiano há de ser agora uma interpretação; e o que fazemos aqui é interpretá-lo. Não encontramos nele seu fundamento original, mas antes aquilo por nós interpretado, que agora passa a ser disponível, mais uma vez, a novas interpretações. Até seu próprio texto não escapa à sua visão rigorosa: ‘Acontecendo de também isto ser apenas interpretação — e vocês se apressarão em objetar isso, não? — bem, tanto melhor!’20 Por isso, concordamos com Jaspers quando ele diz: ‘A interpretação em Nietzsche é de fato uma interpretação do interpretar e, por esta razão, diferente de todas as anteriores, comparativamente interpretações ingênuas, que foram adotadas sem consciência de seu próprio caráter interpretativo.’ 21
Este ciclo interminável da interpretação só é possível porque interpretar é doar sentido (ou significado): ‘“Interpretação” e não explicação. (...) A introdução de sentido — na maioria dos casos, uma nova interpretação sobre uma interpretação antiga que se tornou incompreensível, que agora é apenas um sintoma.’22 Por tudo isso, trata-se de uma atividade criadora, inventiva. Todavia, cria-se algo novo a partir daquilo que nos é disponível. Deve-se, portanto, ser prudente, pois este disponível não pode ser uma folha em branco, um espaço vazio, neutro, isento de sentido.23 Todo disponível já se faz ocupado. Logo, para que haja interpretação, deve-se fazer o inevitável: rearrumar este espaço ocupado; reorganizá-lo, para que assim ele possa ganhar um novo sentido, aquele que nós acabamos de imprimir em seus limites. Esta é toda a nossa dádiva para com aquilo que interpretamos: recompor sob nova tessitura toda interpretação.
Trata-se, portanto, de fazer o “inevitável”. Porque ‘Mesmo nas vivências mais incomuns agimos assim: fantasiamos a maior parte da vivência e não somos capazes de não contemplar como “inventores” algum evento. Tudo isso quer dizer que nós somos, até a medula e desde o começo — habituados a mentir. Ou, para expressá-lo de modo mais virtuoso e hipócrita, em suma, mais agradável: somos muito mais artistas do que pensamos.’24
Por outro lado, realizar essa arte só é possível porque há sempre alguma incompletude em todo interpretar. Porque só assim a estrutura da interpretação poderá comportar um contínuo rearranjo. Caso este rearranjo não fosse possível, também não seria possível o que Zaratustra chama de poetar: compor em unidade o que era, até então, apenas fragmentos dispostos ao acaso — eis todo seu poetar e desejo, a arte da interpretação.25
Trata-se de um impulso poético no qual está implicado um desejo de revitalização, tal como demonstra o último aforismo de Além do Bem e do Mal: ‘Eternizamos o que já não pode viver e voar muito tempo, somente coisas gastas e exaustas! Apenas para sua tarde eu tenho cores’. Vemos aqui uma eterna necessidade de renovação, de uma interpretação sempre nova. Pois a interpretação que já foi realizada eternizou ‘o que já não pode viver’. Por isso é preciso continuar interpretando, para que aquilo que está sendo interpretado possa continuar vivendo. Um exemplo dessa atividade ininterrupta, voltada para a manutenção da vida, já encontramos em Humano, demasiado humano:

"Todo escritor, uma vez que um livro tenha se desligado dele, fica novamente surpreso com o fato de este mesmo livro continuar a viver uma vida própria; para ele é como se tivesse se livrado de um pedaço de um inseto que agora seguiria o próprio caminho. Talvez ele quase o esqueça, talvez ele nem o entenda mais e tenha perdido aquelas asas sobre as quais voou quando imaginou o livro: enquanto ele busca seus leitores, acende a vida, faz feliz, aterroriza, engendra obras novas, vem a ser a alma de novos desígnios e empreendimentos — enfim, ele vive como um ser provido de alma e espírito, ainda que não seja humano. — Aquele autor tem colhido a sorte mais feliz e como homem velho pode dizer que todos os pensamentos e sentidos geradores de vida, fortalecedores, elevadores que estavam dentro dele continuam vivendo nos seus escritos, e que ele mesmo não seja mais nada além de cinzas, enquanto a chama tem sido resgatada e nascida mais adiante em todo lugar. — Se considerar que, não somente um livro, mas toda ação executada por um ser humano vem a ser de alguma forma a causa de outras ações, decisões, pensamentos, que tudo que acontece é inextricavelmente atado a tudo que virá a acontecer, chega-se a reconhecer a existência de uma verdadeira imortalidade, de movimento: aquilo que uma vez se moveu é enclausurado e eternizado na união total de todo ser como um inseto em âmbar." (HH I 208)

Todavia, ao observarmos nossa atividade de interpretar, vemos que toda interpretação, além de ser arte de reunir e compor fragmentos, prossegue mais adiante para tornar-se, mais uma vez, fragmento, entre outros, a ser novamente interpretado. Caso contrário, se não fossem fragmentos, mas já unidade, seriam demasiado rígidas e inescrutáveis, as interpretações. E por isso, simplesmente, jamais poderiam ser apreendidas. Equivaleriam assim a um enigma indecifrável, tornando impossível qualquer compreensão. Isto porque o que há para ser compreendido não pode se fazer sólido demais. Deve antes ser passível de ser moldado 26 e remodelado, para que nossa própria experiência, nossa própria vivência, possa assim dele se apropriar. Uma outra compreensão, privada de qualquer apropriação, exigiria um novo idioma, no qual pudéssemos forjar novas “interpretações”. Um idioma capaz de transferir não só palavras, mas também toda a experiência, toda a vivência daquele que, em poucos segundos, pronuncia suas frases. Em suma: ‘não basta utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências anteriores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o outro.’27 Ou ainda, numa visão mais radical: seria preciso que este mesmo que pronuncia fosse capaz de se fechar a novas experiências e, portanto, ao próprio desenrolar da vida, para que assim, sem o jogo da interpretação, pudesse compreender a si mesmo.
Para Nietzsche, ‘Não se tem ouvido para aquilo que não se tem acesso a partir da experiência.’28 Vemos então que é nossa experiência ou vivência quem interpreta, ou ainda, vemos que é nossa experiência ou vivência quem se apropria do que está sendo interpretado.29 E é por isso que a própria experiência passa a ser também a garantia da revolução dos sentidos, seu fator de infinita multiplicação 30 — pois o caráter múltiplo e fortuito do que é experimentado ao longo de uma vida torna também múltipla a possibilidade de sentidos, os quais, por isso mesmo, sempre poderão tornar-se outros sentidos. Já que a própria experiência, tomando para si a tarefa de interpretar (e, portanto, de delimitar o sentido) é constitutiva da disposição, do ânimo, ou ainda, do Páthos que prevalece em cada interpretação. Por isso, ‘A interpretação é em si mesmo um sintoma de certas condições psicológicas, também de um particular nível espiritual de juízos que prevalecem: Quem interpreta? — Nossas disposições.’ 31 Nesse sentido, segundo ânimos diferentes, sempre oscilantes, desenvolvem-se diferentes interpretações. Sendo assim, a experiência delimita o sentido (diferenciando-o dos demais, que partem de uma outra experiência), mas também os multiplica, porque ela própria se desdobra no tempo e leva consigo uma esteira de sentidos.

É com essa estrutura maleável e sempre em revolução que o “sólido demais” pode finalmente ser modelado e remodelado. Assim, aquilo que há para ser interpretado pode finalmente ser apropriado. Deste modo abdica-se da pretensão a uma exatidão, a uma absoluta e irrevogável certeza ou verdade que supere a arte da interpretação. ‘“Vontade de verdade” a esta altura é essencialmente a arte da interpretação’.32 Assim a interpretação pode se abrir para um múltiplo de possibilidades, numa infinita ‘transitoriedade’ [Vergänglichkeit], tal como uma ‘fruição da força procriadora e destruidora, como uma constante criação.’33

Notas:

1 Sobre a interpretação como atividade produtora de formas, temos uma boa referência em Nietzsche, FP, junho - julho de 1885, 38 [10] (v. nota 1 deste trabalho). Todavia, uma tal produção de formas, assim como a atividade de pensar, sentir e querer, também poderá ser compreendida como transformação, cf. Nietzsche, FP, abril - junho de 1885, 34 [252]: ‘Pensar é um transformar [Umgestalten] falsificando; sentir é um transformar falsificando; querer é um transformar falsificando.’
2 Como faz Gilles Deleuze em seu « Conclusions — sur la volonté de puissance et l’eternel retour ».
3 Nietzsche, EH “O nascimento da tragédia”, 4.
4 Nietzsche, GM III 10.
5 Cf. resume Deleuze, em seu Nietzsche e a filosofia, p. 4.
6 Nietzsche, GC 54
7 Nietzsche, Z, I, “Da virtude dadivosa”. Neste sentido, concordamos com Foucault (Nietzsche, Freud & Marx, p. 26), para quem a semiologia opõe-se à hermenêutica (i.e., à arte de interpretar). Isto porque, com a primeira se privilegia a existência de ‘símbolos que existem primariamente, originalmente, realmente, como marcas coerentes, pertinentes e sistemáticas.’ Enquanto que na hermenêutica vive-se em um tempo circular, onde se está obrigado a passar por onde já se passou, sempre num contínuo movimento de interpretação.
8 Nietzsche, GM, Prefácio 8.
9 Nietzsche, III, p. 400.
10 Cf. Nietzsche, BM 296: ‘Oh, que são vocês afinal, meus pensamentos escritos e pintados!’ Compreendemos esta, como várias outras referências que Nietzsche faz às artes, não apenas como uma mera metáfora para seus pensamentos. Vemos nessas referências uma apresentação da arte como um modo de ser da interpretação. Neste sentido, há algo de comum entre pensar, pintar e interpretar e este algo é a invenção artística. Também no mesmo livro, ele esclarece: ‘que o conceito de “filósofo” não seja restrito ao filósofo que escreve livros’ (§ 39).
11 O pêndulo simples, operando em minúsculos deslocamentos, mostra-se um excelente instrumento de medição da força da gravidade. Sendo conhecido o comprimento do fio que fixa o pequeno corpo oscilante a um ponto qualquer, teremos então que a freqüência de oscilação deste corpo aumentará quando aumentar a aceleração da força que puxa este mesmo corpo para baixo — conhecemos assim (pelas leis do movimento harmônico simples) a aceleração da gravidade. De maneira análoga, o pêndulo da interpretação também mede uma força que puxa para baixo. Pois afinal, que vontade faria de uma eterna repetição da interpretação o próprio objeto do querer. Frente a uma repetição infinita da interpretação, mede-se, portanto, a potência do querer — aquele que quer uma infinita repetição da interpretação supera, infinitamente, as forças que lhe arrastam para baixo (sobre a repetição como um processo seletivo em Nietzsche, temos uma referência em Deleuze, Diferença e repetição, p. 28 a 31).
12 Sobre a eternidade da interpretação, temos um bom exemplo em FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [82] e FP, outono de 1887, 9 [48]. No primeiro fragmento, Nietzsche identifica ‘Interpretação’ com ‘a introdução de sentido’, Sinn-hineinlegen. No segundo, ele afirma: ‘Introduzir um significado — esta tarefa ainda resta ser realizada, assumindo que não há até o momento qualquer sentido.’
13 Nietzsche, A 44.
14 Nietzsche, FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [175]. Também em FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [82]: ‘Não existem fatos, todas as coisas estão em fluxo, incompreensível, elusivo.’
15 FP, fim de 1886 - primavera de 1887, 7 [60]): ‘Nós não podemos contatar nenhum factun “em-si”: talvez seja um absurdo querer uma tal coisa.’
16 Nietzsche, BM 17. Ver também BM 54.
17 Nietzsche, GC 354, KSA V, p. 593.
18 Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [85].
19 Cf. Nietzsche, BM 22, p. 28: as leis da natureza ‘não são uma realidade de fato, um “texto”, mas apenas uma arrumação e distorção de sentido’.
20 Nietzsche, BM 22, pp. 28-29.
21 Jaspers, Nietzsche, II, p. 295.
22 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [82]: O problema da doação de sentido como atividade criadora será ainda abordado mais adiante.
23 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [109]: ‘A imodéstia do homem —: negar o sentido onde ele não o vê.’
24 Nietzsche, BM 192.
25 Cf. Nietzsche, Z II, “Da redenção”: ‘E este é todo o meu poetar [Dichten] e desejo, que eu componha [dichte] e reúna em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso.’
26 Cf. Nietzsche, FP, outono de 1887, 9 [48], que nos esclarece: ‘Em um nível até mais alto, [interpretar] é estabelecer uma meta e moldar os fatos de acordo com ela’. No mesmo aforismo ele diferencia ‘interpretação ativa’ de ‘tradução conceptual meramente’. Isto evidencia, mais uma vez, que Nietzsche não acredita em uma interpretação que seja tal como uma decodificação de um suposto real, i.e. uma pura representação dele.
27 Nietzsche, BM 268, p. 182.
28 Nietzsche, EH, “Porque escrevo tão bons livros” 1. No mesmo sentido, encontramos um bom exemplo em BM 268: ‘— Palavras são sinais sonoros para conceitos; mas conceitos são sinais-imagens, mais ou menos determinados, para sensações recorrentes e associadas, para grupos de sensações. Não basta utilizar as mesmas palavras para compreendermos uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, Ter a experiência em comum com o outro.’ Ver também FP, abril–junho de 1885, 34 [252] (‘No Universo encontramos a força da assimilação, a qual pressupõe uma vontade de tornar as coisas semelhantes a nós.’), FP, junho–julho de 1885, 38 [2] (‘“Conhecimento”: trata-se da expressão de uma coisa nova através dos sinais de coisas já “conhecidas”, já experimentadas.’), assim como em FP, agosto–setembro de 1885, 41 [11] (‘No nosso pensamento, o essencial é ordenar o material novo nos esquemas antigos (leito de Procusto), tornar o novo idêntico ao antigo.’).
29 Note-se ainda que não se trata de uma afirmação da subjetividade: ‘“Tudo é subjetivo”, você diria; mas até isto é uma interpretação.’ (Nietzsche, FP, fim de 1886 - primavera de 1887, 7 [60]) Pois a interpretação em Nietzsche se estabelece para além da dicotomia objetivo–subjetivo, justamente porque não se trata de um sujeito que interpreta objetos (como veremos mais a diante).
30 Neste sentido, concordamos com Gilles Deleuze quando ele afirma que ‘A filosofia de Nietzsche só é compreendida quando levamos em conta seu pluralismo essencial. E, na verdade, o pluralismo (também chamado de empirismo) e a filosofia são uma única coisa. O pluralismo é a maneira de pensar propriamente filosófica, inventada pela filosofia: único fiador da verdade no espírito concreto, único princípio de um violento ateísmo.’ (Cf. Nietzsche e a filosofia, p. 3)
31 Nietzsche, FP, outono de 1885 – outono de 1886, 2 [189]. Preferimos traduzir aqui o termo alemão Affekt pelo termo português disposição. Isto porque uma outra opção, que seria o termo português afecção, é normalmente utilizada como sinônimo de doença, o que não consideramos de todo apropriado. Pois tanto Affekt, em alemão, como affectus, no latim, dizem respeito a um estado físico ou emocional que pode ser de boa ou má disposição.
32 Nietzsche, FP, outono de 1887, 9 [60]. Por isso, concordamos com Eugen Fink quando ele afirma a ‘desconfiança [de Nietzsche] frente ao rigor do conceito, à sua exatidão e força petrificantes’ (“Nova experiência do mundo em Nietzsche”, p. 168).
33 Nietzsche, FP, outono de 1885 - outono de 1886, 2 [106].