domingo, outubro 15, 2006

Nietzsche e a Metafísica Musical

MORAES, Jorge. Nietzsche e a metafísica musical. In: Ítaca, 3: 2002, p. 161-171.



Nietzsche e a Metafísica Musical



Em 1872, como professor de Filologia Clássica na Universidade da Basiléia e sob a influência de Schopenhauer e de Richard Wagner, Nietzsche publica seu primeiro livro, O Nascimento da Tragédia a partir do Espírito da Música, expondo nele a seguinte tese: a tragédia grega, nascida a partir do coro de sátiros, desenvolve-se pela luta entre duas pulsões (Trieb) estéticas, a apolínea e a dionisíaca. A primeira diz respeito ao princípio de individuação, o qual determina as formas da aparência. É ela quem proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se sobretudo na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. A segunda, entretanto, diz respeito ao uno primordial, à destruição de toda individuação, a uma total embriaguez e desmedida, manifestando-se principalmente na melodia e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro de sátiros. Segundo sua tese, o emparelhamento (Paarung) dessas duas pulsões proporcionaria ao espectador da tragédia a possibilidade de entrar em contato com a força destruidora de Dioniso, sem que entretanto fosse destruído por ela, porque seria salvo pelo poder da bela aparência oferecido por Apolo. Por esta razão, explicar-se-ia finalmente o prazer estético produzido pelo horror encenado na tragédia grega.

Todavia, para Nietzsche, o caráter não racional da tragédia, proveniente da embriaguez dionisíaca, desagrada a um instinto que surge para os gregos: o instinto do conhecimento racional, encarnado, segundo ele, na figura de Sócrates. Por não ter afinidades com a encenação trágica de Ésquilo e Sófocles, tendo em vista que os acontecimentos representados por elas não são lógicos, Sócrates as critica, preferindo em lugar delas as encenações de Eurípides 1, justamente por serem inteligíveis. A tragédia, nascida da união entre Apolo e Dioniso, agora inicia seu ocaso. A aparência de Apolo e a embriaguez de Dioniso dão finalmente lugar ao desejo de conhecimento lógico e racional. Com o fortalecimento desta má compreensão da tragédia original, a música cada vez mais desaparece dos palcos, dando lugar ao que Nietzsche chama de "uma falsificada música mascarada". 2 Contudo, este ocaso não é de todo definitivo. Nietzsche não conclui esta sua obra sem antes afirmar que o renascimento da tragédia se faz presente, não mais através da música do coro de sátiros, mas pela música de Richard Wagner, uma promessa de futuro para a arte musical. 3


No mesmo ano em que escreveu sua primeira obra, Nietzsche mostrava-se atraído por uma concepção metafísica do mundo. Entretanto, esta concepção merece ser considerada no âmbito de uma nova perspectiva, tal como ele mesmo afirmava ao amigo Erwin Rohde: "Vejo em breve o indício [Stück] de uma nova metafísica; (vejo) em breve crescer uma nova estética". 4 No mesmo ano ele escreve para Carl von Gersdorff: "agarrei-me à mais séria convicção do valor metafísico da arte [den metaphysischen Wert der Kunst], a qual não pode existir por causa dos pobres seres humanos, mas deve cumprir missões mais altas". 5

Sempre relacionada às artes, esta nova metafísica proposta por Nietzsche - esta "metafísica de artista" 6 (como ele diria 15 anos depois) -, para ser realmente nova, deveria distanciar-se da velha metafísica das artes elaborada por Schopenhauer. Nietzsche, leitor de O Mundo como Vontade e Representação desde 1865, não poderia de modo algum ignorar a metafísica schopenhaueriana do belo - a qual ele mesmo cita por 3 vezes na seção 16 de seu Nascimento da Tragédia. Deste modo, somos levados a acreditar que Nietzsche introduz, conscientemente, correções significativas na metafísica de Schopenhauer, onde a relação entre música e vontade seria modificada. Para verificarmos estas correções, devemos antes retomar as palavras do próprio Schopenhauer sobre a metafísica das artes, tal como ele declara no terceiro livro de sua obra principal: "A relação de cópia com o modelo que ela (a música) tem com o mundo deve ser muito íntima [sehr innige], infinitamente verdadeira [unendlich wahre] e precisamente correta [richtig treffende], visto que todos a compreendem sem custo". 7

Está em jogo, portanto, a relação mimética entre mundo e música. Esta deverá ser, repetimos, "muito íntima, infinitamente verdadeira e precisamente correta". Mas são justamente esses atributos que são corrigidos por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia: "o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural [ein metaphysisches Supplement der Naturwirklichkeit ist], colocada junto dela a fim de superá-la. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração [metaphysischen Verklärungsabsicht] inerente à arte como tal". 8

A arte, para Nietzsche, não é portanto "apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural". Em outras palavras, a arte não meramente imita o mundo-vontade, mas adiciona algo a ele, um "suplemento metafísico" que finda por modificá-lo. Isto porque é inerente à metafísica do jovem Nietzsche um "intento (...) de transfiguração". Ou ainda, porque o "impulso metafísico procura criar para si uma forma (...) de transfiguração". 9

Esta transformação da natureza operada pela arte tem o objetivo de elevar, afirmar a vida; nas palavras de Nietzsche, trata-se de "uma nova ilusão transfiguradora para manter em vida o ânimo da individuação". 10 Nestes termos, parafraseando Aristóteles, Nietzsche bem poderia dizer: em geral, a arte imita a natureza, transfigurando-a. 11

Todavia, esta afirmação da vida através da arte tem, no jovem Nietzsche, ainda um caráter incipiente, no qual pode-se identificar a marca de Schopenhauer. Pois "manter em vida o ânimo da individuação" também pode soar como um consolo para os males do mundo. Por isso a metafísica de artista, elaborada por Nietzsche, corresponde enfim a um "consolo metafísico [metaphysische Trost], sem o qual não há como explicar de modo algum o prazer pela tragédia". 12 O problema é determinar se o consolo metafísico de Nietzsche corresponde ao consolo que Schopenhauer encontrou nas artes e enunciou da seguinte forma: "O gosto pelo belo, o consolo que a arte proporciona [der Trost, den die Kunst gewährt], o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida, esta única prerrogativa do gênio em relação aos outros, a compensá-lo pelo sofrimento também crescente na mesma medida da lucidez da consciência e pela solidão árida numa multidão heterogênea - tudo isso repousa em que veremos, a seguir, que o em si da vida, a vontade, a própria existência, é um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". 13

Essa visão pessimista de Schopenhauer, na qual a arte é tida como um consolo, só tem sentido porque a própria existência já é considerada como "um sofrimento contínuo, em parte miserável, em parte terrível". Nestes termos, ainda que a concepção metafísica de Schopenhauer tenha sido corrigida por Nietzsche, o consolo metafísico nietzschiano guarda ainda forte vestígio do pessimismo schopenhaueriano. Para Nietzsche, diante da realidade do mundo, as artes teriam uma função similar a que lhes atribuiu Schopenhauer. Mas não pelo paradoxo enunciado por ele: quanto maior a "lucidez da consciência", maior "o entusiasmo do artista, o qual lhe permite esquecer as penas da vida". Ao contrário, para o jovem professor, é pela ilusão e pelo sonho e não pela "lucidez da consciência" que se esquece as penas da vida. É graças ao análogo simbólico do sonho nas artes que "a vida torna-se possível e digna de ser vivida". 14 Segundo Nietzsche, esta foi uma descoberta da antigüidade heróica grega. "O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos". 15

Em favor do jovem Nietzsche cabe ressaltar, entretanto, que todo o consolo metafísico atribuído por ele às artes visa, sobretudo, à afirmação da vontade de viver e não à sua negação. Trata-se de um tônico necessário à ação e não de um anestésico paralisador. Assim, inverte-se a sabedoria de Sileno: "A pior coisa de todas é para eles morrer logo; a segunda pior é simplesmente morrer um dia". 16

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Uma questão que permanece ainda em suspenso - diante da apropriação que o jovem Nietzsche fez da obra de Schopenhauer - é se o termo vontade em Nietzsche de fato corresponde conceitualmente à vontade schopenhaueriana. O próprio Nietzsche, em suas anotações da época, afirma claramente que não.

Desde seu contato com a obra de Friedrich A. Lange em 1866 - portanto, um ano depois de ler Schopenhauer -, Nietzsche inicia uma critica à metafísica do belo schopenhaueriana, em vários fragmentos, dos quais o que se segue é exemplar: "Mesmo toda a vida pulsional [Triebleben] (o jogo dos sentimentos, sensações, afetos e atos da vontade) nos é conhecida, pelo mais estrito auto-exame - como devo aqui intercalar contra Schopenhauer - apenas como representação [Vorstellung], e não segundo sua essência: e devemos ainda dizer que mesmo a ‘vontade’ de Schopenhauer é apenas a forma mais geral da aparência daquilo que permanece para nós (algo) totalmente indecifrável". 17

Embora Nietzsche não pareça disposto a transpor o mundo das representações em direção à coisa em si, ele admite que "podemos destinguir dois tipos principais no domínio das representações": as "sensações de prazer e desprazer [Lust- und Unlustempfindungen] que acompanham todas as outras representações como um infalível baixo-contínuo". Mas, em vez de dar um novo nome para estes dois tipos principais de representações, Nietzsche resolve "continuar a chamar de ‘vontade’ ... esta manifestação mais geral a qual", segundo ele, "é nossa única pista para todo devir e querer". 18

Desde 1868, Nietzsche já havia criticado o uso do termo vontade na obra de Schopenhauer: "A coisa em si toma aqui (na obra de Schopenhauer) uma de suas possíveis formas". 19 Naquele período, Nietzsche compreendia a coisa em si kantiana como sendo algo muito maior e irredutível ao termo escolhido por Schopenhauer; neste sentido, qualquer apreensão desta coisa em si, mesmo pela arte, seria uma limitação equivocada. Agora, três anos depois, ele parece ir apenas até onde a arte realmente pode chegar. E o limite que Nietzsche encontrou, o mais longínquo, foram as sensações de prazer e desprazer; para além deste ponto, o caminho seria completamente interditado. Entretanto, este já seria um grande avanço. Pois mesmo que as sensações básicas de prazer e desprazer não coincidam com a vontade schopenahueriana, elas permanecem ainda instâncias universais, visto que "acompanham todas as outras representações". Além disso, diferentemente da antiga vontade, esta nova instância "tem sua própria esfera simbólica na linguagem" 20; podendo, deste modo, ser comunicada simbolicamente. Neste sentido, Nietzsche esclarece: "Todos os graus de prazer e desprazer - exteriorizações de um fundo primevo [Urgrundes] não transparente - simbolizam-se no tom do falante [im Tone des Sprechenden] (...). À medida que este fundo primevo é o mesmo em todos os seres humanos, o fundo tonal é também geral e compreensível, apesar das diferenças entre as línguas". 21 Em termos resumidos: embora correspondam apenas a um aspecto do fundo primevo (da coisa em si), prazer e desprazer acompanham cada representação possível e podem ser expressos através do tom do falante. A linguagem falada, portanto, em suas variações de tonalidade, carrega consigo as sensações de prazer e desprazer que exprimem (ainda que parcialmente) o uno primordial. Este, entretanto, não é um privilégio da fala; "todas as outras representações", ou seja, tanto o gesto, quanto a imagem, cada uma ao seu modo, também são (ou podem ser) atravessadas pelas sensações de prazer e desprazer.


É apenas por este viés que Nietzsche poderá introduzir a música como expressão da coisa em si. Pois é através dela que a fala alcançará "uma expressão mais adequada" daquilo que Nietzsche continua chamando de "vontade" (ou sensações de prazer e desprazer). Por isso, ele afirma: "Esta manifestação primordial, a ‘vontade’, com sua escala de sensações de prazer e desprazer, consegue, porém, no desenvolvimento da música, uma expressão simbólica ainda mais adequada; cujo processo histórico é acompanhado [nebenher läuft] como o contínuo esforço do [poeta] lírico para transcrever a música em imagens". 22

Através dessas valiosas anotações, Nietzsche esclarece o que Schopenhauer considerava "impossível de provar" 23: a relação imediata entre música e vontade. De fato impossível, uma vez que o acesso à vontade era limitado. Mas também esclarece o poder que Wagner encontrou na música, a saber, a capacidade de penetrar em outras artes, tais como a pintura e a poesia, para assim resgatar-lhes a "força poética". 24 Isto seria possível apenas pelo contínuo esforço de "transcrever a música em imagens".

Vemos que dentro da metafísica nietzschiana da transfiguração, mesmo através da música, é vedado o acesso direto e total à vontade, à coisa em si schopenhaueriana. Em vez disso, impedida de levar qualquer sujeito do conhecimento até esse extremo, o que faz a música é expressar prazer e desprazer, de maneira bastante peculiar: "Agora deve a essência da natureza expressar-se simbolicamente [symbolisch ausdrücken]". 25 Sutil diferença e de grande valia: com ela percebemos que toda expressão também implica num movimento para fora (außer), num movimento de exteriorização. Exprimir ou expressar (ausdrücken) é, portanto, forçar algo para fora, pressionar (drücken) até que se manifeste, venha à luz. A arte dos tons (Tonkunst), uma arte da intensidade (tôu tónou), falando sempre através da "comovedora violência do som [erschütternde Gewalt des Tones]" 26, faz prazer e desprazer emergirem violentamente de si mesma, usando para isso o que lhe é próprio: a maestria da intensidade.

Notas:

1 Cf. PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena R. Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, s/d. p. 407: "Não é em vão que a tragédia parece ser sábia e que nela se distingue Eurípides" (568a). Tal como ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 252: para ele, "Eurípides, ainda que sua execução seja falha em cada um dos outros pontos, apesar disso, apresenta-se certamente como o mais trágico dos tragediógrafos" (1453a 28-30).
2 NIETZSCHE, F. Die Geburt der Tragödie. In: ______. Werke in drei Bänden. München: Hanser, 1954. v. I, p. 64.
3 Nietzsche menciona, especificamente, Tristão e Isolda de Wagner.
4 NIETZSCHE, F. Briefe. In: ______. Op. cit. v. III, p. 1040. (Friedrich Nietzsche an Erwin Rohde, 29. März 1871).
5 Idem, p. 1042. (Friedrich Nietzsche an Carl von Gersdorff, 21. Juni 1871).
6 É de se notar que, precisamente este termo "Artisten-Metaphysik" nunca foi utilizado por Schopenhauer em sua obra principal, O Mundo como Vontade e Representação.
7 SCHOPENHAUER, A. Die Welt als Wille und Vorstellung. In: Werke in zehn Bänden (Zürcher Ausgabe). Zürich: Diogenes, 1977. v. I, p. 322.
8 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 130.
9 Idem, p. 127.
10 Idem, p. 133.
11 Nas palavras de HANSLICK. Do Belo Musical. Tradução de Nicolino S. Neto. Campinas: Unicamp, 1992. p. 156: "A arte não deve imitar servilmente a natureza, deve transformá-la".
12 Idem, p. 97.
13 SCHOPENHAUER. Op. cit. p. 335.
14 NIETZSCHE. Die Geburt der Tragödie. Op. cit. p. 23.
15 Idem, p. 30.
16 Idem, ibidem.
17 NIETZSCHE, F. Nachgelassene Fragmente. In: Kritische Studienausgabe. Berlim: de Gruyter, 1988. v. VII, p. 360-1, 12[1]. Este fragmento em especial detem grandes semelhanças com as teses do pessimista alemão Eduard von Hartmann, autor de Filosofia do Inconsciente, obra que Nietzsche conheceu e apreciou.
18 Idem, p. 361. Cf. também Idem, p. 202, 7 [165]: "Não há nada em nós, que ao uno primordial seja reconduzido. A vontade é a forma mais geral da aparência [die allgemeinste Erscheinungsform]: i.e. a alternância entre dor [Schmerz] e prazer [Lust]".
19 Cf. NIETZSCHE, F. Zu Schopenhauer. In: Frühe Studien. München: DTV, 1994. v. III, p. 352-361.
20 NIETZSCHE. Kritische Studienausgabe. Op. cit. v. VII, p. 361.
21 Idem, ibidem.
22 Idem, p. 362.
23 SCHOPENHAUER. Op. Cit. p. 323.
24 WAGNER, Richard. Beethoven. Tradução de Theodomiro Tostes. Porto Alegre: L&PM, 1987. p. 89.
25 NIETZSCHE. Werke in drei Bänden. Op. cit. v. I, p. 28.
26 Idem, ibidem.