domingo, novembro 19, 2006

Uma Breve História do Caos: entre Teogonia e Teodicéia.

“Sim, bem primeiro nasceu o Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresistível sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais”. Hesíodo. Teogonia.

O mais antigo, o primeiro deus da mitologia grega, segundo Hesíodo (VIII-VII a.C.), anterior tanto à Terra, quanto a Tártaro e a Eros, parece não ter qualquer preeminência diante das demais divindades. Ao contrário, em vários momentos do pensamento ocidental, o mais primitivo dos deuses acaba por ser de diversas formas desprivilegiado, o que de certo modo parece ocorrer mesmo nos versos de Hesíodo, onde esse deus assemelha-se a um abismo primordial, a partir do qual surgem divindades obscuras: Érebos (a antecâmara do inferno) e Noite. No poema grego, dessa última deusa nascem ainda “as forças da debilitação, da penúria, da dor, do esquecimento, do enfraquecimento, da aniquilação, da desordem, do tormento, do engano, da desaparição e da morte — em suma, tudo o que tem a marca do não-ser.”[1] Todas essas divindades (descendentes de Caos) vêm ao mundo não pela união amorosa, mas pela força de uma cissura, numa espécie de esquizogênese: marca inegável de seu antecessor primordial. Os únicos deuses da linhagem de Caos que nascem pela união (em vez da cissura) são Éter e Dia, também os únicos descendentes luminosos e positivos daquele primeiro deus. Eles vêm ao mundo pela força do amor, ou seja, de Eros, a força oposta à cissura de Caos — o deus da unidade amorosa. Talvez por isso, ele seja cantado por Hesíodo como “o mais belo entre os Deuses imortais” (kállistos).

Eros e Caos reaparecem também em um outro mito, na verdade anterior a Hesíodo, comumente atribuído aos cultos órficos, mas que encontra uma bela adaptação nos versos de Aristófanes (450 a.C.-388 a.C):

“No princípio só havia o Caos, a Noite, o obscuro Érebo, e o profundo Tártaro. A terra, o ar e o céu não existiam ainda. [695] Primeiramente, a Noite de negras asas botou um ovo sem germe no seio das profundezas infinitas de Érebo, e a partir daí, depois da revolução de longas eras, o gracioso Eros saltou brilhante com suas asas douradas, rápidas como os vendavais da tempestade. Ele uniu-se ao obscuro e alado Caos no profundo Tártaro e assim, depois disso, chocou nossa raça, a qual foi a primeira a ver a luz. [700] A [raça] dos imortais não existiu até que Eros tivesse reunido todos os ingredientes do mundo e, a partir desse matrimônio, o Céu, o Oceano, a Terra e a raça imperecível dos divinos deuses saltou para a existência. Assim nossa origem é muito mais velha do que a dos moradores do Olimpo. Nós somos a descendência de Eros; há mil provas para demonstrar isso. Nós temos asas e nós oferecemos ajuda aos amantes. [705] Quantos belos jovens, que haviam jurado permanecer insensíveis, abriram suas coxas por causa de nosso poder e se renderam a amantes [mais velhos] quase ao término de sua mocidade, sendo conduzidos [ao amor] por presentes como uma codorniz, um flamingo, um ganso, ou um galo.”[2]

As palavras do corifeu de As Aves mostram como o Caos, mais uma vez, está ligado às forças do não-ser (Noite, Érebus e Tártaro) e mostram também como somente através da intervenção de Eros surge a vida, sob a forma da primeira raça “a ver a luz”. Em seu ato de criação, foi preciso que Eros reunisse todos os ingredientes necessários para que finalmente surgisse a vida. Foi preciso que a unidade de Eros dominasse a cissura de Caos e assim pudessem surgir os deuses imortais. Todavia, é inegável o casamento entre esses dois princípios opostos: a criação não é um atributo apenas de Eros ou Caos, mas surge do encontro de ambos os deuses.

Apesar desse casamento descrito pelo célebre comediógrafo de Atenas, o privilégio de Eros, o mais belo dos deuses, em relação ao Caos e às outras divindades reaparece em vários momentos do pensamento ocidental, onde a unidade que é representada pelo amor é tomada como o princípio fundador de todas as coisas. Por exemplo, em Parmênides (515-445 a.C.): “Como primeiro concebeu [daimon], antes de todos os deuses, Eros”.[3]

Também em Platão (427-348 a.C.), num diálogo onde o próprio Hesíodo aparece como referência, afirma Fedro: “Assim, achamos que a antiguidade de Eros é universalmente admitida, e verdadeiramente ele é a antiga fonte de todos os nossos mais elevados deuses.”[4] Essa frase do Banquete, em especial, soa de forma estranha justamente ao lado do verso de Hesíodo. Afinal, como Eros poderia ser anterior ao próprio Caos na Teogonia? Isto se dá apenas porque Caos não aparece exatamente como um deus, diria Aristóteles, mas como um princípio, uma arxé ; todavia, uma arxé negativa, totalmente oposta à unidade de Eros. Aristóteles admite que tanto Caos quanto Oceano são tomados como princípio (arxé) para alguns poetas, mas ele defende a unidade como princípio, em lugar da dualidade ou da pluralidade.[5]

Muito embora não encontremos uma clara negatividade ontológica de Caos na antiguidade clássica, do ponto de vista estético e moral ela é inegável. Pois esse deus primitivo sempre aparece associado a males, enquanto a ordem é referida à beleza[6]. É considerado não apenas como algo anterior a uma ordenação, mas por isso mesmo algo destituído de toda beleza.[7] Seguindo essa mesma linha, Aristóteles (384-322 a.C.), por exemplo, associa a ordem ao belo e ao bem, e o caos ao feio e ao mal. Depois de citar a célebre passagem da Teogonia sobre o surgimento de Caos, Gaia e Eros, Aristóteles afirma o seguinte:

“Assim insinuando [Hesíodo] que deve haver no mundo alguma causa a qual mova as coisas e as combine. (...) Agora desde que ficou aparente que a natureza também contém o oposto do que é bom, i.e. não só ordem e beleza, mas desordem e feiúra; e que há mais coisas piores e comuns do que há boas e belas: devido a isto outro pensador introduziu o Amor e o Ódio como as causas respectivas destas coisas”. [8]

Séculos mais tarde, a negatividade do deus Caos ganha vida sob a forma do conceito de desordem. No período da escolástica, por exemplo, Nicolau de Cusa (1401-1464) descreve o “tenebroso caos” como sendo a massa disforme, matéria a partir da qual o entendimento e a razão formam, finalmente, a realidade.[9] Desse modo, embora seja dotado de uma massa ou matéria, lhe faltaria o estatuto de realidade. Essa mesma ausência de realidade, encontramos ainda no renascimento. Com Agrippa (1486-1535), o caos é visto como “o que nunca é e nem vem a ser, aquilo que torna os sentidos completamente errados.”[10] Portanto, a negatividade ontológica do caos passa a ser cada vez mais certa. Caos e não-ser identificam-se completamente.

Um século depois, Descartes (1596-1650), em seu Discurso do Método, alude à possibilidade de que o Deus cristão pudesse ter criado um mundo caótico “tão tumultuado quanto os poetas possam nos fazer acreditar”,[11] mas que, em seguida, não fizesse outra coisa senão deixar a natureza agir “conforme as leis estabelecidas por Ele.” Alicerçando seus argumentos a partir do princípio da perfeição divina, Descartes demonstra como ao menos “parte da matéria desse caos”, sendo submetida às leis da natureza, deve “dispor-se e arranjar-se de uma certa maneira que a torne semelhante” a nosso Universo. Mas afirma também ser “muito mais provável que, desde o início, Deus o tenha tomado tal como devia ser.” Assim, de modo análogo ao que utilizou para expurgar o Deus enganador em suas Meditações, Descartes expurga também o caos do Universo.

Algumas décadas depois, num contra-movimento, Pascal (1623-1662) encontra o caos na própria natureza humana, dando largos passos em direção ao romantismo e ao pessimismo do século XIX. Neste sentido, ele afirma:

“Que quimera é então o ser humano! Que estranha aparência! Que caos, que objeto de contradições! Juiz de todas as coisas, débil verme da terra, dono da verdade, cheio de incertezas, prêmio e excremento do Universo! (...) um monstro incompreensível.”[12]

Para ele, o caos não é nem um vazio, nem uma ilusão. Em vez disso, é a própria realidade viva e incompreensível no interior dos homens.

Mais de 20 séculos depois de Hesíodo, Leibniz (1646-1716) escreve sua própria história divina, não sob a forma de uma Teogonia politeísta (como a do poeta grego); mas em uma Teodicéia cristã. Nessa obra de 1710, descrevendo o processo de formação dos corpos dos animais, aliás no mesmo tom de Descartes, ele afirma o seguinte:

“Isso pode vir apenas do infinitamente poderoso e infinitamente sábio autor (Urheber) de todas as coisas, o qual criou tudo na ordem e antecipadamente forneceu lá desde o início cada ordenação e arte. Não há caos no interior das coisas nem no organismo em todas as partes da matéria, cuja ordenação se origina de Deus”.[13]

Quatro anos mais tarde, o autor da Monadologia confirma essa tese em sua célebre obra: “Assim, não há nada baldio, nada de estéril, nada de morto no universo, nenhum caos, nenhuma confusão salvo em aparência”.[14]

Vemos, portanto, como, da antiguidade a Leibniz e sob formas diferentes, houve uma hegemonia da ordem nos diversos discursos filosóficos sobre o caos. Assim, ele foi visto predominantemente[15] de maneira negativa: ou do ponto de vista ontológico, ou estético, ou ainda (na maioria das vezes) moral. Todavia, a história do caos não finda no século XVIII. Ao contrário, ela está apenas iniciando seus primeiros passos. A partir daí o caos passará verdadeiramente a ser pensado; estando presente agora não apenas na filosofia, mas também nas ciências. Em vez de ser visto como um impeditivo para o conhecimento humano, ele começa a se transformar num elemento fundamental para a compreensão dos vários fenômenos que cercam a vida humana: das artes à biologia, da física às ciências sociais.

Notas:

[1] TORRANO, Jaa. A quádrupla origem da totalidade, p. 44.
[2] ARISTÓFANES, As Aves. Versos 605-706. Comparar com a tradução brasileira de Mário da Gama Kury (ARISTÓFANES, As Aves, p. 139).
[3] PARMÊNIDES, Fr. 13. In: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os Pensadores Originários, p.53.
[4] PLATÃO. Banquete [178c]. In: ______. Collected Dialogues. p. 533.
[5] A explicação encontra-se em ARISTÓTELES. Metaphysics [1091b5-6]. In: ______. The complete works of Aristotle. p. 1724. Comparado com texto bilíngüe Aristotle's Metaphysics, ed. W.D. Ross.
[6] Cf. PLATÃO. Político [273b-c], op. cit. p. 1038.
[7] Cf. PLATÃO. Timeu [53], op. cit. p. 1179-8.
[8] ARISTÓTELES. Metafísica I [985a1-10].
[9] NICOLAU DE CUSA. Da Douta Ignorância. In: ______. Wichtigste Schriften, p. 52, 98.
[10] AGRIPPA. O Discurso contra a Incerteza e Vaidade das Ciências e das Artes. In: ­­­­­______. Die Eitelkeit und Unsicherheit der Wissenschaften und die Verteidigungsschrift, p. 7.
[11] DESCARTES. Discurso do Método, p. 52.
[12] PASCAL. Pensamentos sobre a Religião, p. 234.
[13] LEIBNIZ, G. W. A Teodicéia, p. 21.
[14] LEIBNIZ, G. W. A Monadologia § 69. In: ______. Selections, p. 547. Ver também p. 548.
[15] Afirmamos “predominantemente” apenas porque, vez por outra, é possível encontrar exceções à regra, isto é, pensadores que de algum modo, ainda que indiretate e sem se referir especificamente aos termos “caos”, “desordem” etc. foram capazes de oferecer alguma contribuição significativa para o pensamento do caos (em vez de nadificá-lo, como os demais). Por exemplo: Giambattista Vico, cf. DUKE, Marshall. Chaos Theory and Psychology: Seven Propositions, p. 282: “É intrigante notar que o mesmo conceito de ‘vidas dentro de vidas’ em todas as áreas da função natural e humana também foi proposto há uns trezentos anos nos escritos de Giambattista Vico. As idéias de Vico, tal como as dos mais recentes teóricos do caos, também começaram a se infiltrar na psicologia moderna”. Além de Vico, talvez Lucrécio e muito provavelmente Paracelso também se insurgiram contra a tendência que foi predominante da antiguidade a Leibniz. Já os pré-socráticos serão discutidos mais adiante.

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