domingo, outubro 15, 2006

Heráclito entre Hegel e Nietzsche

MORAES. Jorge. HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE. In: MORPHEUS. Rio de JAneiro: UniRio, No. 06 - 2004.

ABSTRACT
In the present paper I intend to confront Hegel and Nietzsche's thought in the light of the so-called tragic Philosophy. I will evaluate specifically Hegel's prominence as a tragic philosopher. Firstly, I will characterize tragic philosophy in its relationship with a possible affirmation of being, in order to finally ascertain this relationship in Hegel and in Nietzsche. In this course, however, I will use Heraclit as a reference, in nietzschian as well as in Hegelian speech. Should I be successful, we will see that Hegel's philosophy, in spite of containing a valorization of time and transitivity, sees being in the teleological realm; parting, as such, from a tragic philosophy proclaimed by Nietzsche.

RESUMO
Nesse artigo pretendo confrontar o pensamento de Hegel e de Nietzsche à luz da chamada filosofia trágica. Trata-se especificamente de avaliar a proeminência de Hegel como filósofo trágico. Nesse sentido, visamos primeiramente caracterizar a filosofia trágica em sua relação com uma possível afirmação do devir, para finalmente apontar essa relação em Hegel e em Nietzsche. Nesse percurso, entretanto, tomaremos Heráclito como referência, tanto no discurso nietzschiano, quanto no hegeliano. Caso tenhamos sucesso, veremos que a filosofia de Hegel, apesar de conter uma valorização do tempo e da transitoriedade, acaba por determinar esse devir no âmbito da teleologia; distanciando-se assim da filosofia trágica proclamada por Nietzsche.


HERÁCLITO ENTRE HEGEL E NIETZSCHE


Em sua Introdução à Filosofia da História de Hegel, Jean Hyppolite afirma a proeminência do autor da Fenomenologia do Espírito com relação a uma visão trágica do mundo. Segundo ele:
o conceito de destino está carregado de sentido e parece escapar às análises da razão. É um conceito irracional, muito mais do que a idéia de positividade; é à visão trágica que Hegel vai buscar, uma visão trágica que com Hölderlin e antes de Nietzsche, apercebe o pano de fundo sombrio da serenidade helênica. 1

O problema que esta afirmação de Hyppolite traz à tona pode ser resumido numa única e breve questão: a filosofia dialética de Hegel seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche? A de se notar, entretanto, que o próprio Hyppolite, ao advogar a proeminência de Hegel com relação à visão trágica, faz menção ao autor de Zaratustra . E não poderia ser de outro modo, pois isso realmente se faz necessário ao menos por uma simples razão: nenhum outro filósofo antes de Nietzsche se autodenominou um filósofo trágico; e mais do que isso, nenhum outro filósofo, além de Nietzsche, se auto-proclamou o “primeiro filósofo trágico ” 2, ou o inventor do trágico, mesmo em detrimento aos filósofos gregos. Portanto, para desbancar Nietzsche, como deseja Hyppolite, nada mais justo do que se conhecer o conceito nietzschiano de trágico e verificar se ele é compatível com a filosofia hegeliana e então verificarmos se Hegel pode ter sido um precursor da filosofia trágica.

Todavia, embora Nietzsche se considere o primeiro filósofo trágico, é certo que ele não elimina a possibilidade de um antecessor. Neste sentido, ele postula o obscuro Heráclito como pensador que talvez tenha compreendido o trágico. 3 Justamente aí se destaca uma importante proximidade com Hegel, autor que também tanto prezava o filósofo de Éfeso. Diante dessa proximidade entre Hegel e Nietzsche, tentaremos através de Heráclito estabelecer um elemento distintivo entre que talvez possa caracterizar a chamada filosofia trágica. Numa palavra, tentaremos confrontar Hegel e Nietzsche através de Heráclito.

Desde de 1870 Nietzsche, como jovem professor de filologia, já esboçava suas teses sobre filosofia trágica. Naquela época, entretanto, eram elas restritas apenas aos alunos que acompanhavam seu curso na Universidade da Basiléia sobre os filósofos pré-platônicos, mais precisamente, nas aulas sobre Heráclito. Depois de uma explanação geral sobre a vida e o pensamento do filósofo de Éfeso, Nietzsche afirma:

"No fundo, ele é o contrário de um pessimista. Por outro lado, ele não é nada otimista: pois ele não nega o sofrimento e a desrazão: a guerra mostra-se para ele como o eterno processo do mundo (...); isto é genuinamente helênico. Há nele uma harmonía, mas uma [harmonia] baseada na discordância palíntropos [discordante] "4

Naquelas anotações dos cursos de 1870-71, o jovem professor ainda não havia dado um nome a esse pensamento (nem pessimista, nem otimista) de Heráclito. A harmonia “baseada na discordância [discordante]” ainda não possuía uma denominação. Mas fica bastante clara a intenção de apresentá-lo por oposição aos demais.

Um ano depois (ao publicar sua primeira obra), Nietzsche fala de Heráclito como o filósofo contemporâneo de um grande evento, o nascimento da tragédia. 5 Morta "em conseqüência de um conflito insolúvel, portanto tragicamente" 6, o renascimento da arte trágica se daria finalmente a partir da música alemã, a qual Nietzsche compara à filosofia heraclítica:

"que o mentiroso e o hipócrita tomem cuidado com a música alemã: pois justamente ela é, em meio a toda a nossa cultura, o único espírito de fogo limpo, puro e purificador, a partir do qual e para o qual, como na doutrina do grande Heráclito de Éfeso, se movem em dupla órbita circular todas as coisas: tudo o que chamamos agora de cultura, educação, civilização terá algum dia de comparecer perante o infalível juiz Dioniso." 7

O fogo de Heráclito, presente tanto nos acordes da música alemã como na tragédia grega arcaica, seria capaz de incendiar a cultura ocidental, reformulando-a a partir das cinzas. A música que Nietzsche considerava apolínea serviria então como instrumento de transformação nas mãos do “infalível juiz Dioniso”.

No entanto, esse movimento atribuído à doutrina de Heráclito não se resume a uma mera reformulação, cujo fim seria uma nova cultura pronta e acabada. Longe disso, com a “ajuda da relação musical da dissonância", Nietzsche descreve o "fenômeno dionisíaco que toma a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer”. 8 Como filósofo trágico, Nietzsche já comparava esse fenômeno à filosofia de Heráclito, para o qual o jogo de criação e de destruição do universo tem um caráter espontâneo, não visando qualquer fim - tal como “uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.” 9 Seguindo as prescrições do autor do Nascimento da Tragédia, essa nova cultura deveria estar também inserida num infinito movimento, nunca resolvido, nunca acabado, mas sempre em aberto, sempre dinâmico, tal como as dissonâncias não resolvidas de Tristão e Isolda, as quais (poucos anos antes) revolucionavam a concepção de harmonia da época na Europa e se tomavam a esperança de Nietzsche com relação ao futuro da música alemã.

Já em 1873 (portanto, um ano após a publicação de seu primeiro livro), Nietzsche produz um ensaio onde a figura do filósofo obscuro reaparece: A filosofia na época trágica dos gregos. Neste escrito, ele mostra o que há de comum entre Schopenhauer e Heráclito: para ambos a natureza existe somente por causa de uma luta constante, de um eterno conflito. Todavia, diferentemente de Heráclito, para Schopenhauer, essa luta “não passa de uma prova da auto-cisão da vontade de vida, uma autocorrosão deste instinto sombrio e confuso; é um fenômeno absolutamente horroroso, nada beatificante.”10 Nietzsche mostra como o pessimista de Frankfurt julga negativamente o conflito eterno, "o jogo de Zeus". 11 Entretanto, para o Heráclito nietzschiano, o conflito ganha um caráter positivo: não apenas tudo "acontece de acordo com essa luta", mas também “é essa luta que manifesta a justiça eterna.” 12 Deste modo, o conflito é visto como justo e a justiça é vista como existindo apenas no interior do conflito.

Nietzsche mostra assim como o jogo de Zeus ou o jogo da criança (presente tanto nos cursos de 1870-1, quanto no Nascimento da Tragédia e no ensaio de 1873) passa a ser "uma metáfora sublime" utilizada pelo filósofo de Éfeso. Ela designa o fogo eterno, "um devir e um declínio sem qualquer justificação moral". 13 Para Nietzsche, entretanto, por Heráclito não ser um homem artístico, “ele recorre à imagem do jogo da criança”, que Nietzsche encontra também nas artes: “Aqui reina a inocência, mas também a criação e a destruição”, 14 acrescenta o jovem professor. Para Heráclito, o jogo inocente e sem propósito é uma metáfora da natureza, 15 mas Nietzsche encontra na arte essa mesma metáfora. A arte inocente e sem propósito passa a figurar como um modelo para compreender o eterno e despropositado movimento de criação e destruição da natureza. Nesse sentido, o único propósito que poderia ser atribuído a esta arte, passa a ser a afirmação de seu próprio movimento, reflexo do prazer do artista em realizar sua arte, sem nenhum objetivo exterior a essa realização, a não ser sua própria participação no devir arte de sua obra.

É com Nietzsche e Heráclito, que encontramos no devir um elemento central na filosofia trágica. Mais do que isso, se evidencia um gosto especial pelo devir e suas conseqüências — o qual Nietzsche mais tarde denominaria amor fati. Todavia, ainda não seria por esse viés que lograríamos diferenciar Nietzsche de Hegel, tal como o próprio autor de Zaratustra destaca:

"Nós alemães, somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse existido um Hegel, na medida em que (ao contrário de todos os latinos) damos instintivamente ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, um valor mais profundo e mais rico do que aquilo que ‘é' - nós mal acreditamos que se justifique o conceito de 'ser' —" 16

Só esta afirmação de Nietzsche já justificaria a tese de Hyppolite. Além disso, o valor atribuído por Hegel à doutrina de Heráclito (a mesma que inspirou Nietzsche) nos leva mais uma vez a nossa questão: a filosofia dialética de Hegel não seria uma antecipação da filosofia trágica de Nietzsche?

Todavia, quando lemos o conteúdo dos cursos que Hegel escreveu sobre estética, mais precisamente no que se refere à arte trágica, tal proeminência poderia parecer estranha ou até mesmo inadequada. Lá a tragédia é vista à luz de um conflito entre forças que são, na verdade, particularizações de uma totalidade. Contrapostas, tais forças são igualmente corretas, mas também equivocadas. Nesse sentido, uma peça exemplar para Hegel seria Antígona. Do conflito que nasce entre elas não necessariamente deveria surgir constrangedora a exigência de uma resolução, ou de uma síntese, um fim. Mas essa exigência faz-se presente para Hegel e a sua dialética. Por isso, ao fim de toda luta, faz-se necessária a resolução, ou mais precisamente, uma espécie de reabsorção das forças particulares no interior do todo:

"Logo, tão legítimo é o fim e o caráter trágico como necessária é a solução desse conflito. Com efeito, assim se realiza a justiça eterna nos fins e nos indivíduos, restabelecendo-se a sua substância e unidade morais pela supressão da individualidade que perturbava o repouso." 17

Mesmo assim, esta reabsorção das forças particulares pela totalidade poderia ser vista como não sendo de todo apaziguadora. Mas não parece ser esse o caso. Hegel, tal como Nietzsche também utiliza o fenômeno musical da dissonância. Todavia, para se diferenciar do autor do Nascimento da Tragédia, afirmando “que a harmonia surja como resultado dela [da dissonância], por meio da solução do conflito”. 18 Está em jogo, portanto, uma concepção de harmonia própria do movimento romântico, notadamente, a inaugurada por Beethoven: consonância, dissonância e resolução. Análoga a ela, encontramos o modelo marxista de dialética atribuída a Hegel: tese, antítese e síntese - os três tempos do compasso hegeliano. Todavia, essa síntese bem poderia permanecer tensa, instável, dinâmica, tal como afirmam alguns dos grandes intérpretes de Hegel, a fim de valorizar seu pensamento:

"Os opostos são opostos entre si, mas eles não se opõem à unidade. Por certo, a unidade é nada mais que a união, ou síntese, dos opostos. Ela não é imobilidade, e sim movimento. Ela não é fixidez, mas desenvolvimento. (...) o concreto universal, com suas sínteses dos opostos, expressa a vida e não o cadáver da vida; ele fornece a fisiologia e não a anatomia do real." 19

Esta expressão da vida, como salienta Croce, se dá através do "movimento". Portanto, ao fim da dialética hegeliana, deveríamos ter não um mero ponto final, mas sim as oscilações que caracterizam a vida e suas vicissitudes. Pelo mesmo caminho, argumenta Francis Fukuyama, esclarecendo que o polêmico fim da história em Hegel não corresponderia a um fim dos conflitos ou eventos significativos para a humanidade, mas um fim do "processo evolutivo" das formas de governo ou de organização das "sociedades humanas". Conforme assinala Fukuyama:

"Isto [o fim da história em Hegel e Marx] não significava que o ciclo natural de nascimento, vida, e morte terminaria, que eventos importantes já não aconteceriam, ou que os jornais que os informam cessariam ser publicados. Significava, antes, que não haveria nenhum progresso adicional no desenvolvimento de princípios subjacentes e instituições, porque todas as perguntas realmente significativas já haviam sido resolvidos." 20

Mesmo assim, se as análises de Croce e de Fukuyama estiverem corretas (embora, segundo Lefebvre e Gérard Lebrun, isto seja um equivoco) 21, a estética da tragédia de Hegel e, como vimos, sua "supressão da individualidade que perturbava o repouso" acaba por comprometer uma possível filosofia trágica hegeliana. Se ela existe, de modo algum foi enunciada em seus cursos sobre a tragédia. Vemos assim, finalmente, o que está em jogo no conceito de trágico: a noção de fim, de conclusão, ou resolução. Se essa conclusão for sinônimo de repouso, ela jamais poderá ser trágica. Pois lhe faltaria o movimento próprio da vida.
Todavia, haverá quem também perceba nas reflexões nietzschianas sobre a tragédia um "cheiro indecorosamente hegeliano" 22 e, a partir daí, veja na relação entre ApoIo e Dioniso uma forma possível da dialética de Hegel - o que bem poderia ser justificado pela influência indireta de Feuerbach através da figura de Richard Wagner na obra de Nietzsche. Desse modo, nos perguntamos se talvez a filosofia trágica de Nietzsche não se faça presente em seu discurso sobre a tragédia?

Esta é, porém, uma hipótese pouco provável, por várias razões. A primeira delas encontra-se a poucas linhas da própria afirmação de suspeita de Nietzsche. (1) Como sua obra poderia ser dialética se "a verdadeira oposição" 23 apresentada por ela se dá entre Dioniso e Sócrates? Esta oposição tem como resultado a morte da tragédia e não qualquer tipo de síntese. (2) A relação entre ApoIo e Dioniso se mostra, em várias passagens, conflituosa e em várias outras, harmoniosa: "luta incessante e onde intervêm periódicas reconciliações" 24. Nunca estão absolutamente unidos, nem totalmente separados. Sua relação aparece sempre de forma dinâmica, ou energética, tal como na relação entre consonância e dissonância da harmonia inaugurada por Richard Wagner em Tristão e Isolda. A harmonia de sua união reside justamente na tensão produzida pelo encontro de ambas as pulsões: apolínea e dionisíaca - tal como se fossem os pólos de uma bateria. (3) A supremacia de Dioniso sobre Apolo, identificada por vários comentadores, também nos leva a conceber um tipo de relação não dialética, uma relação de outra ordem. Tudo se passa como se Apolo fosse a expressão de Dioniso. Deste modo, o deus Dioniso aparece no palco individualizado na figura apolínea do protagonista da tragédia. Afinal, quem é mais apolíneo do que Édipo, que quer estabelecer a ordem em Tebas e punir com sua ira todos os culpados? Todavia, essa individualização apolínea se dissolve no terrível fim do herói trágico. (4) A história dos contratempos que envolveram a publicação de O Nascimento da Tragédia mostra uma obra que foi concluída sob o signo de concessões, subtrações, acréscimos, mudanças de direção etc. Por tudo isso, podemos dizer que este é um texto difícil, pleno de contradições e imprecisões. Essas dificuldades, entretanto, têm levado vários interpretes à tentação de simplificar o que não é de modo algum simples, reduzindo este primeiro livro de Nietzsche a uma ou outra influência de juventude: Wagner, Schopenhauer etc. Por esta razão, é preciso se precaver e encarar esta obra com suas dificuldades e dar-lhe um sentido unificado apenas onde isso for possível. Deste modo, considerando justamente a miscelânea assistemática que forma O Nascimento da Tragédia, mesmo que de fato a filosofia trágica de Nietzsche ainda não se encontra ali pronta e acabada, cabe compreender que nessa obra complexa estão contidos (ainda que misturados e emaranhados) os elementos principais da filosofia trágica nietzschiana. 25

Quanto a nossa questão original, talvez encontremos a chave para a sua resposta justamente num visível ponto em comum entre Nietzsche e Hegel, o apreço para com a doutrina do obscuro Heráclito.

Em seu Curso sobre a História da Filosofia, o próprio Hegel afirma sem nenhuma reserva: "Não há uma sentença de Heráclito que eu não tenha acolhido em minha lógica." 26 Nesta lógica, porém, Hegel anuncia a prioridade do Ser: "O ser puro constitui (macht) o começo, porque ele é tanto pensamento puro, quanto incerto e simples imediato. Porém, o primeiro começo não pode ser nada de mediato e ainda determinado.” 27 Tudo isso faz com que o ser guarde também uma íntima relação com o nada: "Este ser puro agora é a pura abstração, para ser o negativo absoluto, o qual tomado do mesmo modo em sua imediatidade, é o nada.” 28 Como síntese, união desses conceitos opostos (e intimamente relacionados), surge o devir: "O nada, como este imediato, é similar a si mesmo, e inversamente o mesmo que o ser. A verdade do ser tal como a do nada, portanto, é a unidade de ambos; esta unidade é o devir.” 29 Esta mesma relação já aparecia na anterior Ciência da Lógica: o ser como um a priori do pensamento e, como tal, uma forma vazia, abstrata e, portanto, equivalendo a um nada. Por fim, a união concreta e materializada do ser e de seu oposto - ser e nada consumados no devir.

Nesta lógica, o fato de o ser se encontrar em primeiro lugar, de modo algum, postula para ele um valor mais elevado. O devir sim, como síntese das abstrações de um ser que equivale a um nada, passa a ser considerado como ponto mais elevado. O devir como síntese, como ponto final de uma trajetória lógica, representa um avanço considerável no pensamento ocidental. Situado em segundo plano desde Heráclito, o devir precisaria de um filósofo como Hegel para se tomar novamente o foco do pensamento ocidental.

Todavia, o movimento a que Hegel se refere (este devir como síntese) possui uma característica que o toma muito distante do movimento trágico da filosofia nietzschiana. Ele possui uma teleologia. Ele busca um fim, uma razão na história, uma realização concreta do Ideal em sua união com o Real. Essa teleologia percorre toda a obra de Hegel, da Fenomenologia do Espírito à Filosofia da História.

Em Nietzsche, entretanto, vemos o oposto. Como jovem estudante de filologia, ele já se colocava ao lado de Kant contra as teses teleológicas. E já parecia consciente da íntima relação entre tais teses e o otimismo vigente: "Otimismo e teleologia caminham de mãos dadas” 30, escrevia em 1867. Num sentido completamente oposto, em Hegel a história caminhava em direção à união entre o Ideal e o Real, onde o espírito deve conquistar a consciência de si se afastando da natureza, para assim alcançar o ápice de sua própria essência: a liberdade. Nas palavras de Hegel: "A liberdade encontrou a chave para realizar seu conceito como sua própria verdade. Esta é a meta da história mundial, e nós temos que percorrer o longo caminho que simplesmente é claramente estabelecido.”31

Em Nietzsche, principalmente quando ele interpreta Anaxágoras e Heráclito, esse conceito de liberdade (próprio do otimismo alemão) assume um outro caráter. Esta liberdade não é subordinada a uma meta histórica, como em Hegel. Para Nietzsche, "esse querer absolutamente livre só pode pensar-se como desligado de qualquer fim, à maneira de um jogo de crianças ou do jogo do instinto artístico.” 32 Liberdade, portanto, passa a estar intimamente relacionada a encontros fortuitos, ao acaso, ao jogo instintivo do artista.

Deste modo, compreendendo o pensamento trágico de Nietzsche, tal como ele mesmo o expressou, como tendo um possível precursor em Heráclito (i.e. em sua doutrina do jogo inocente e despropositado da criança), seria impossível identificar esse mesmo pensamento trágico na filosofia de Hegel: uma filosofia que dança somente em compassos ternários, cujos passos permanecem obedientes a um fim bem preciso e determinado. A adesão à vida, como princípio da filosofia trágica, não comporta um único compasso, tampouco a obediência a predeterminações. O passo da dança deve acompanhar a música da vida. Por isso, a filosofia trágica não pode ter um fim no duplo alcance do termo: (1) nem fim como conclusão, acabamento, resolução do movimento; (2) nem fim como meta, objetivo ou predeterminação do mover-se.

Neste sentido, se a filosofia de Hegel é uma filosofia do devir, como a de Nietzsche, ela não pode ser considerada trágica, porque esse devir percorre um caminho já previamente traçado e esquadrinhado. Embora o devir não seja expulso do pensamento, ele é aprisionado pela filosofia hegeliana em um projeto previamente elaborado.

Notas:

1 HYPPOLITE , Jean . Introdução à Filosofia da História de Hegel . Trad. José M. Lima. Lisboa: Elfos, 1995, p. 45.
2 NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, Kritische Studien Ausgabe. Berlim: Walter De Gruyter, 1988, vol. VI, p. 312 (doravante, KSA VI , p. 312).
3 Cf. NIETZSCHE. Ecce Homo . In: ______, KSA VI , p. 312-3.
4 NIETZSCHE. Os filósofos pré-platônicos. ln : ______, Kritische Gesamtaugabe. Berlin: Walter De Gruyter, 1995, Tomo II, vol. 4, p. 282 (doravante, KGW II4 , p. 282).
5 Cf. NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 78.
6 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 11 . In: ______, KSA I , p. 75.
7 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 19. In: ______, KSA I , p. 127-8.
8 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
9 NIETZSCHE. O Nascimento da Tragédia, § 24 . In: ______, KSA I , p. 153.
10 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §5 . In: ______, KSA I, p. 826.
11 Ibid., p. 374.
12 Ibid., p. 372.
13 NIETZSCHE. Die vorplatonischen Philosophen. In: ______, KGW II4 , p. 278.
14 Idem, Ibidem .
15 Cf. HERÁCLITO. Frag. 52. In: Diels-Vorsokr. Die Fragmente der Vorsokratiker 2 vol. 4a ed. Bilíngüe de DIELS, Herma nn. Berlin: Weidmannsche, 1922, vol. 1, p. 88: “O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.”
16 NIETZSCHE. A Gaia Ciência, § 357. In: ______, KSA III , p. 399.
17 HEGEL. Curso de Estética II. In: ______, Werke 20 vol. Frankfurt am Main: Suhrkamp,1970, vol. 15, p. 524 (doravante W 15 , p. 524).
18 HEGEL, Curso de Estética I . In: ______, W 13 , p. 268. Passagem traduzida por GONÇALVES, Márcia. O belo e o destino. São Paulo: Loyola, 2001, p. 290.
19 CROCE, Benedetto. "The Dialectic or Synthe sis of Opposites". In: ______, What is Living and What is Dead of the Philosophy of Hege!. Trad. Ainslie, Douglas. Lanham: University Press of América, 1985.
20 FUKUYAMA, Francis. By way of an introduction. In: ______, The end of History and the last man. New York: Avon Books, 1993, p. xii.
21 Ver LEFEBVRE, Lógica Forma/Lógica Dialética. Trad. Carlos Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 173 e LEBRUN, Gerard. O avesso da dialética Hegel à luz de Nietzsche . Trad. Renato Janine Ribeiro São Paulo: Companhia das Letras , 1988, p. 101-2.
22 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 310 .
23 NIETZSCHE . Ecce Homo. In: ______, KSA VI , p. 311.
24 NIETZSCHE . O Nascimento da Tragédia , § 1. In: ______, KSA I , p. 25.
25 Estes quatro pontos encontram-se desenvolvidos em minha dissertação de mestrado ______, O Pensamento Dissonante. Dissertação de Mestrado em Filosofia IFCS- UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
26 HEGEL. Curso de história da Filosofia. In: ______, W XVIII , p. 320.
27 HEGEL. Plano para enciclopédia das ciências filosóficas. ln: ______, W VIII , p. 182-3.
28 Idem, Ibidem , p. 186.
29 Idem, Ibidem, p. 188.
30 NlETZSCHE, Zur Teleologie. ln: ______, Jugendschriften em 5 vol.. München: Beck. Vol. III, p. 371 (BAW III, p. 371).
31 HEGEL. Curso de Filosofia da História. In: ______, W XII , p.141.
32 NIETZSCHE, A filosofia na época trágica dos gregos, §19. ln: ______, KSA I , p. 872.