domingo, novembro 19, 2006

Uma Breve História do Caos: Do Xáos ao Chaos.

Esse longo percurso da antiguidade à modernidade exige, entretanto, um cuidado filológico; um tratamento mais apurado daquilo que poderia ser considerado a “mesma” palavra. Esse tratamento pode apontar para grandes variações semânticas onde somente pequenas variações fonéticas são percebidas. Por isso, a valorização do chaos em Hume não pode ser imediatamente comparada com a desvalorização do xáos em Platão ou em Aristóteles, ou com a nadificação do chăŏs em Nicolau de Cusa, em Agrippa, Descartes, ou em Leibniz. Se em todos eles o sentido de caos parece estar próximo do que modernamente poderíamos chamar de desordem, essa desordem assumiu ao longo da história da filosofia aspectos bastante distintos: para os antigos (mais precisamente, os gregos), ela assumiu a forma de uma cisão[1], de uma ruptura a partir da qual surge o mundo; por outro lado, para os modernos, ela assume a forma de uma profusão de encontros não-delineados, indefinidos, como em uma mistura violenta e ininteligível. Embora sejam sentidos diametralmente opostos (uma cissura irascível versus uma unidade disforme e violenta), em ambos os casos, encontramos o sinônimo de desarmonia: ou bem uma desarmonia da separação produzida pelo xáos grego, ou bem uma desarmonia da fusão no emaranhado do caos moderno.

Uma das formas pela quais podemos verificar essa inversão do caos, de cissura à unidade, pode ser, por exemplo, através de uma leitura de Aristóteles, no original, comparando-a com a tradução moderna do mesmo texto. Na passagem que escolhemos, quando o ex-discípulo de Platão retoma a unidade ou a mistura presente em Anaxágoras e em outros pré-socráticos, essa mesma mistura passa a ser considerada, aos olhos dos tradutores modernos, como algo caótico. Mas, como podemos ver, esse caos não está presente na letra de Aristóteles:

“tudo é gerado a partir do ser, mas do ser em potência e não em ato. E este é o ‘um’ de Anaxágoras; pois tanto o seu ‘tudo unido’ (homoú pánta), como a ‘mistura’ (mígma) de Empédocles e de Anaximandro, como também a doutrina de Demócrito seria expressa melhor como ‘tudo é uno em potência, mas não em ato.’” [2]

Desse modo, Aristóteles não rejeita a unidade de todas as coisas na origem, mas apenas a corrige, mostrando que essa unidade não existe em ato mais apenas em potência. Porém, mais do que isso, o importante é que ele não identifica essa unidade com o caos, como fazem os modernos em suas traduções. Por exemplo, na tradução da mesma passagem feita pelo filósofo e tradutor alemão Adolf Lasson[3] (1832-1917), publicada em 1907, onde se lê homoú pánta" (literalmente, “tudo unido”), Lasson traduz “chaotisches Durcheinander[4] (cuja melhor tradução para o português é “confusão caótica”). Essa compreensão do que seja o caos está presente em uma infinidade de autores modernos, mas em nenhum grego, simplesmente porque a palavra xáos (em grego) não permite essa identificação com a unidade. Por outro lado, de Shakespeare a Novalis, encontramos inumeráveis formas dessa identidade entre caos e a profusão de encontros não-delineados, indefinidos e ininteligíveis. No fragmento 95 de Pólen, por exemplo, Novalis afirma:

“Antes da abstração tudo é uno, mas uno como o caos; depois da abstração tudo está novamente unido, mas esta união é uma ligação livre de seres autônomos, autodeterminados. A partir de uma turba desenvolveu-se uma sociedade, o caos foi transformado em um mundo múltiplo.”[5]

Por isso, por compartilhar do mesmo pensamento de sua época (do mesmo solo em que pensaram seus contemporâneos), Lasson, ao verter o “tudo unido” como “chaotisches Durcheinander”, na verdade estava interpretando essa unidade como caótica. Mas a unidade, para um grego, vem de Eros e não de Caos, e simplesmente por essa razão ela é valorizada. Para o moderno, ao contrário, essa unidade é falta de esquadrinhamento, falta de divisão, enfim, falta de ordem — ordem que se expressa como “cada lugar para uma coisa; cada coisa em seu lugar”.

Notas:

[1] Isso inclusive se sustenta etimologicamente, cf. LIDDELL; SCOTT. Greek-English Lexicon, p. 1976. Ver também Xános e Xánuw, respectivamente, “boca” e “falar com a boca bem aberta” (Idem, ibidem). Assim, Heidegger interpreta também Xáos como “bocejo”, o que se fende em dois (auseinander klaffen), cf. HEIDEGGER. Nietzsche II, p. 91.
[2] Ver ARISTÓTELES. Metafísica (1069b 20-4). Edição bilíngüe de W.D. Ross.do. , que entretanto, a partir de Hume estx unidade
[3] Filósofo e professor na Universidade de Berlim, além de tradutor de Aristóteles e Giordano Bruno.
[4] ARISTOTELES. Metafísica (1069b 20-4). Trad. Adolf Lasson, p. 163.
[5] NOVALIS. Blüthenstaub. In: ______. HKA II, p. 454-456.